A unidade policial mais conhecida do Brasil nasceu relegado ao improviso de barracas de campanha, com o nome de NuCOE (Núcleo da Companhia de Operações Especiais), em 1978. O emblema da caveira trespassada por um punhal, ornado por duas garruchas cruzadas, só viria em 1980, dois anos antes de a “sede” ser transferida para o Batalhão de Choque. E só em 1991, ganhou o status de batalhão.
Os últimos 13 anos, já em sua maioridade, no século 21, foram definidores do Bope. A primeira década do século foi de superações, em que a unidade precisou enfrentar provas de fogo, decepções, vitórias, ser escrutinada pela mídia e a sociedade e, por fim, reinventar-se. Antes instalada com certa precariedade no Batalhão de Choque , em 2000 o Bope ganhou sede própria no alto da favela Tavares Bastos, em Laranjeiras. Logo, as canções bradadas em coro durante exercícios assustavam os moradores do bucólico Parque Guinle, reduto vizinho de classe média-alta. “Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão!”
No novo quartel, a tropa cresceu, ganhou autonomia administrativa e de recursos. A unidade já consolidava sua mística de “Caveiras”. Para isso, contribuíam a roupa preta, o emblema e a fama de mortal eficiência nas incursões em favelas dominadas por traficantes.
O fracasso que ensinou
As coisas iam aparentemente bem até o maior fracasso da história do Bope: o sequestro do ônibus 174 . Tudo deu errado naquele 12 de junho de 2000. O sobrevivente da chacina da Candelária Sandro do Nascimento entrou no coletivo para um assalto. Foi interceptado no Jardim Botânico e, em suspense com transmissão da TV, que durou a tarde toda, ameaçou os passageiros e simulou assassinar uma mulher. Sem dispor nem ao menos de rádios, os PMs do Bope se comunicavam por gestos enquanto negociavam com o sequestrador, aparentemente drogado. O comandante da unidade, coronel Penteado, estava no local e os atiradores de elite posicionados, mas a ordem para disparar um justificável tiro fatal de sniper não veio – ou foi negada.
Após horas de negociação frustrada, o sequestrador saiu do ônibus com a professora Geísa Gonçalves, 20 anos. Um soldado arremeteu para matá-lo, mas errou os dois tiros. Um acertou Geísa; o sequestrador disparou seu revólver e a matou. A segunda morte manchou ainda mais a ação – que virou documentário e filme. Dentro do camburão do Bope, a caminho para a prisão, PMs asfixiaram o sequestrador. O comandante caiu, a investigação terminou sem condenados, mas o caso permanece como uma mácula.
Por outro lado, serviu para o Bope se dar conta de suas deficiências. Foi a um só tempo uma provação e um momento-chave de definição. Em escalas diferentes, assemelhou-se ao massacre da delegação israelense nas Olimpíadas de Munique-1972, quando os alemães se provaram incapazes de enfrentar os terroristas palestinos; e à malfadada tentativa americana de resgate de reféns no Irã, em 1980 – um helicóptero bateu em um avião e oito soldados morreram.
Com o 174, a unidade acordou para suas falhas, da mesma maneira que os EUA e a Alemanha perceberam a necessidade de ter forças especiais adestradas para situações críticas.
Evolução
Os “caveiras” passaram pela expiação pública. Estudaram os erros da ação e readaptaram procedimentos e doutrina. Perceberam a falta de treinamento adequado, equipamento e autonomia funcional para decidir tecnicamente uma situação de crise. A unidade se aperfeiçoou especialmente no resgate de reféns.
Nos anos que se seguiram, o Bope evoluía em meio à desconfiança da sociedade e da mídia. Em 2001, chegou o primeiro e polêmico blindado, logo apelidado de “Caveirão”, por ter estampada a insígnia da caveira trespassada por um punhal , símbolo das unidades de operações especiais. Junto, vieram as críticas de entidades de direitos humanos. A imagem agressiva era ratificada por relatos de medo das favelas, após tiroteios. Só no fim da década, os blindados passariam a ser mais aceitos , como forma de proteção dos PMs, versão defendida pelas forças de segurança.
Diante da crônica e crescente crise de segurança no Estado, o Bope era requisitado de forma rotineira, em operações em favela. Sua atividade era quase diária, e o desempenho muito superior ao da tropa convencional. A mística de invencibilidade e a eficiência assustavam os criminosos, mas a sociedade ainda vinculava a unidade a violência, e o “fantasma” do 174 permanecia vivo.
Tropa de Elite e a "vitória sobre a morte", o renascimento simbólico
Em 2007, veio, de forma inusitada, a redenção, com o filme “Tropa de Elite” , fenômeno de bilheteria e pirataria que retratava uma unidade heroica incorruptível, mas capaz de quaisquer métodos – da tortura às execuções. Inicialmente, a PM refutou com veemência o filme, vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim. Mário Sérgio Brito Duarte, ex-comandante do Bope e depois comandante-geral da força, deplorou a obra, em artigo. O comando se recusou a assisti-lo e comentá-lo.
Paradoxalmente, o filme seria o grande impulsionador do novo momento do Bope, tornando-o pop. A violência do protagonista, capitão Nascimento, não chocou a maior parte do público: ele passou a encarnar um herói popular, cujas falas e jargões eram repetidos nas ruas e até nos quartéis. A imagem de incorruptibilidade e eficiência colou no Bope – um segmento “puro” de uma PM estigmatizada pela corrupção.
Aos poucos, após o primeiro momento de postura defensiva, a unidade – mais que a corporação – soube capitalizar o prestígio a partir do filme. Os “caveiras” se tornaram super-heróis. Cresceu enormemente o interesse da mídia nacional e internacional por suas atividades e cursos de formação excruciantes. Todos queriam conhecer os homens de preto. Internamente, na corporação, o Bope se reafirmou como exemplo. Em seguida, passou a emprestar parte de seu prestígio para o resto da PM. O reconhecimento elevou o moral da tropa.
Choveram candidatos a seus cursos de Operações Especiais (COEsp) e de Ações Táticas (CAT), e o sucesso do filme levou milhares a postular uma vaga na PM. Assim, inesperadamente, Tropa de Elite ajudou a redefinir a imagem do Bope e da própria PM. Com sensibilidade política, o então comandante, Alberto Pinheiro Neto, hoje chefe de Estado-Maior da PM , e os comandantes que o seguiram – Paulo Henrique Moraes, atual comandante das UPPs, e o tenente-coronel Renê Alonso , ainda no cargo – souberam aproveitar o momento e angariar apoio no governo para obter equipamento e treinamento.
Na gestão Sérgio Cabral, hábil no uso do marketing, a estratégia comunicacional deu certo. Depois de renascer após o malfadado 174 – a “vitória sobre a morte”, símbolo da unidade –, novamente o Bope, com maturidade, aproveitou um momento, a princípio negativo, e usou a superioridade relativa para se reinventar.
Nas ruas, os resultados se consolidaram, em operações bem-sucedidas em favelas e resgates de reféns, por negociação ou intervenção tática. Depois do 174, o Bope nunca mais perdeu reféns em ação.
A tropa de elite era sempre convocada para as operações mais delicadas – Pan-Americano, grandes eventos e visitas de autoridades internacionais ao Rio. Convites de estágios para os integrantes surgiam de todo o mundo, e seus instrutores ministravam cursos de progressão em áreas de risco por todo o País.
O Bope ganhou uma equipe de comunicação própria, competente em projetar a imagem de eficiência e rejeitar a antiga, de truculência.
Bope pacificador
No fim de 2008, com o prestígio em alta, o batalhão com 400 homens recebeu um papel-chave na principal política de segurança do Estado do Rio: as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) . A decisão estratégica de ter o Bope como primeira tropa no terreno das futuras UPPs foi tomada pela Secretaria de Segurança e o comando da PM, pelo expertise dos “homens de preto” em áreas de risco, o prestígio e a capacidade de dissuasão dos criminosos. “O Bope encarnava a representação simbólica da confiabilidade e de tropa de combate”, disse o tenente-coronel Silva, ex-subcomandante. “Somos uma tropa confiável e provada no terreno”, opinou o comandante, tenente-coronel Renê.
A princípio, a unidade intervinha como sempre nas comunidades; diferentemente de antes, porém, passou também a manter o terreno. Com o sucesso das ocupações, o programa foi sendo elaborado enquanto acontecia, tendo a unidade como ponta-de-lança, até a implantação das UPPs.
Assim surgiu o novo papel do Bope, o de “pacificador”, antagônico a sua imagem histórica. Seus integrantes atuam como “prefeitos”, cuidando do ordenamento do local e regulando serviços informais. O caminho, nessa atividade de risco, não é sem falhas. Em operação de pacificação, no Morro do Andaraí, em 2010, um cabo matou um morador após confundir sua furadeira por arma. Os combates não terminaram, e a tropa de elite ainda é chamada para emergências, mas a maioria das ações é sem tiros. Hoje, preponderam operações de pacificação, não de confronto.
O futuro do Bope reflete o prestígio construído desde sua criação, mas reforçado no século 21. A unidade ganhará modernas instalações, no COE (Centro de Operações Especiais) , que reunirá as unidades de elite da PM, onde será a estrela máxima.
Atualmente, é modelo e serve como laboratório de testes e inovações da PM – como a alimentação no terreno e o programa de saúde para a tropa – a serem replicadas nas demais unidades. A tropa de elite amadureceu na idade adulta. Em sua evolução, conquistou a confiança da população e buscou substituir a imagem pública de violência pela de eficiência e confiabilidade.
O Bope chega aos 35 anos com a imagem repaginada, tendo o próprio trabalho como marketing.
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