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Em Gurajat, Meena ganhou 400 rupias por dia (quase R$ 28) e mandou grande parte para casa. Empregos e salários despencaram depois que a Índia adotou uma quarentena de 21 dias para tentar conter o avanço da pandemia de coronavírus. O país de 1,3 bilhão de habitantes registrou até agora 1.251 pessoas infectadas com coronavírus e 32 mortes.
Sem transporte público, ele viajou a pé no asfalto sob o sol quente, à base de biscoito e água.
"Eu andei durante o dia e durante a noite. Qual seria a alternativa? Eu tinha pouco dinheiro e quase nenhuma comida", me contou Meena.
Ele não estava sozinho. Por toda a Índia, milhões de trabalhadores migrantes estão voltando a pé para suas casas depois que as cidades onde atuavam se fecharam.
Esses profissionais informais são a espinha dorsal da economia das grandes cidades, ao construírem casas, cozinharem refeições, entregarem marmitas, cortarem os cabelos em salões, produzirem carros e limparem banheiros, entre outras atividades.
Em fuga da pobreza de suas pequenas vilas, mais de 100 milhões de pessoas vivem em moradias precárias em guetos urbanos superpopulosos, enquanto aspiram pela ascensão social.
Trabalhadores informais são a espinha dorsal da economia das grandes cidades
Getty ImagesHomens, mulheres e crianças começaram suas jornadas em diversas horas desde o dia 24. Eles carregam seus poucos pertences, como comidas, água e roupas, em sacos de pano. Jovens levam suas mochilas esfarrapadas, e crianças são carregadas nos ombros quando estão cansadas demais para andar.
Eles andam tanto de dia quanto de noite. A maioria afirma ter ficado sem dinheiro e teme enfrentar a fome. "A Índia estão caminhando de volta para casa", resumiu o jornal The Indian Express.
O êxodo impressionante remete à fuga de refugiados durante a sangrenta secessão em 1947, quando a Índia, ex-colônia britânica, foi repartida. Quase 15 milhões de refugiados em situação precária viajaram para o Paquistão, que se tornou independente naquele ano.
Trabalhadores imigrantes contam com mais segurança social em suas vilas de origem
Sunil Ghosh /Hindustan Times via Getty ImagesClaramente, a quarentena para conter a pandemia está se tornando uma crise humanitária.
Entre os refugiados estava Kajodi, mulher de 90 anos cuja família vende brinquedos baratos em semáforos em um subúrbio nos arredores de Nova Déli.
Ela caminhava com sua família para a terra natal, no Rajastão, quase 100 km dali. Eles comiam biscoitos e fumavam beedis (cigarros tradicionais enrolados a mão) para matar a fome.
Munida de um cajado, ela caminhava havia três horas quando o repórter Salik Ahmed a encontrou. A retirada humilhante não havia lhe roubado o orgulho. "Ela disse que teria comprado uma passagem para voltar para casa se o transporte estivesse funcionando", me disse Ahmed.
A multidão no asfalto incluía também um garoto de cinco anos que estava numa jornada de 700 km a pé, ao lado do pai, que trabalhava na construção civil, de Nova Déli até o Estado de Madhya Pradesh, no centro do país. "Quando o sol se por, nós vamos poder parar e dormir", disse o pai do garoto à jornalista Barkha Dutt.
Outra mulher caminhava com o marido e a filha de dois anos e meio com uma mochila refleta de comidas, roupas e água. "Nós tínhamos um lugar para ficar, mas não havia dinheiro para comprar comida."
Havia ainda Rajneesh, um trabalhador de 26 anos da indústria automobilística que caminharia 250 km até sua vila na região de Uttar Pradesh. Levaria pelo menos quatro dias para chegar. "Nós vamos morrer andando antes de o coronavírus nos atingir."
Ele não estava exagerando. Na semana passada, um homem de 39 anos em uma jornada de 300 km começou a reclamar de exaustão e dores no peito, e acabou morrendo. Um homem de 62 anos morreu na porta de casa ao voltar a pé do hospital que ficava quilômetros dali.
Noutra noite, quatro refugiados morreram atropelados por um caminhão em uma estrada mal iluminada.
À medida que a crise se agrava, governos patinam para oferecer transporte, abrigo e comida.
Kajodi Devi, de 90 anos, caminha de Déli em direção a sua vila
SALIK AHMED/OUTLOOKArvind Kejriwal, ministro-chefe de Nova Déli, implorou aos trabalhadores que não deixem a capital. Ele pediu que eles "fiquem onde estão, porque em grandes aglomerações há também o risco de contrair coronavírus".
Kejriwal afirmou que o governo pagaria o aluguel deles e anunciou a abertura de 568 centros de distribuição de comida na capital do país. O primeiro-ministro, Narendra Modi, pediu desculpas pela quarentena, "que tem causado muitas dificuldades em nossas vidas, especialmente para os pobres", acrescentando que "essas medidas duras são necessárias para vencer essa batalha".
Modi e os governantes estaduais parece não ter previsto esse êxodo em massa.
O primeiro-ministro tem sido extremamente atencioso com os trabalhadores indianos que vivem em outros países. Centenas deles foram levados de volta em voos especiais. Mas a situação dos trabalhadores locais não foi a mesma.
"Querer ir para casa numa crise é natural. Se estudantes, turistas e peregrinos indianos estão presos no exterior, o mesmo acontece com trabalhadores nas grandes cidades do país. Eles também querem voltar para suas vilas. Nós não podemos mandar aviões buscar uma parte, mas deixar a outra ir a pé para casa", escreveu no Twitter o fundador e editor do jornal The Print, Shekhar Gupta.
Há diversos precedentes na história da Índia de êxodos em massa durante grandes crises
Getty ImagesHá diversos precedentes de êxodos desses trabalhadores durante crises, como em 2005, durante as inundações de Mumbai. Em 1918, durante a gripe espanhola, quase metade da população da mesma cidade (então chamada Bombaim) deixou o local.
Quando a praga atingou o oeste da Índia em 1994, houve "praticamente um êxodo bíblico de centenas de milhares de pessoas da cidade industrial de Surat, em Gujarat", relembra o historiador Frank Snowden em seu livro Epidemics and Society (Epidemias e a Sociedade, em tradução livre)
Em 1896, novamente metade da população de Bombaim deixou a cidade por causa da praga. As medidas draconianas para conter o avanço dela impostas pelo Império Britânico, escreve Snowden, pareciam mais uma marreta do que um instrumento cirúrgico, e muitas pessoas que fugiam dali levaram consigo a doença da qual fugiam.
Mais de um século depois, o mesmo medo atinge a Índia hoje. Centenas de milhares de imigrantes vão chegar em algum momento a suas casas, seja a pé ou em ônibus superlotados. Lá, viverão com seus parentes em casas onde estão também parentes mais velhos.
Cerca de 56 distritos em nove Estados somam metade da força de trabalho migrante do país, segundo dados do governo indiano. Esses lugares têm o potencial de se tornarem centros de disseminação da doença, caso essas pessoas tenham contraído o vírus onde estavam.
Êxodo pode contribuir para espalhamento do coronavírus ao redor do país, mas tambem garantir seguranca social para milhares de pessoas
Getty ImagesNo fim, a Índia está enfrentando desafios imensos e previsíveis em sua quarentena gigantesca e tentando garantir que os mais pobres não sejam fatalmente afetados. Muito disso, me afirmou Snowden, vai depender de como serão administradas as consequências da quarentena e da adesão da população, que é fundamental. "Caso contrário, há um potencial de pobreza, tensão social e resistência."
A Índia já anunciou um pacote de quase US$ 22 bilhões (R$ 114 bilhões) para aliviar o impacto sobre os afetados pela quarentena, mas talvez não seja suficiente.
Os próximos dias serão determinantes para sabermos se os Estados serão capazes de transportar trabalhadores para suas casas ou de mantê-los nas cidades enquanto proveem comida e dinheiro. "As pessoas estão se esquecendo do que está em jogo em meio o drama das consequências da quarentena: o risco de milhões de pessoas morrerem", afirma Nitin Pai, da Instituição Takshashila, um renomado think tank.
"E a maioria dos afetados serão os pobres."
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