Mulheres fugindo da Venezuela são alvos de abuso em meio a fronteiras fechadas

Ilustração fronteira Colômbia-Venezuela

Se Gabriela Ochoa soubesse o que aconteceria com ela perto do rio Táchira, que divide a Venezuela e a Colômbia, ela nunca teria feito a travessia.

Mas sua família estava desesperada.

A mãe solteira de 21 anos vinha lutando para sobreviver depois que a economia da Venezuela desabou sob o regime do presidente Nicolás Maduro. Em 2019, ela perdeu o emprego em uma loja de frutas e não conseguia mais alimentar seus três filhos pequenos, todos com menos de cinco anos.

Com os alimentos subsidiados pelo governo cada vez mais escassos e caros, Ochoa nem se deu ao trabalho de buscar ajuda governamental. Em vez disso, depois de um breve período morando com sua mãe, com quem tinha um relacionamento problemático, ela decidiu se mudar para a Colômbia. A jovem mãe ouviu dizer que lá poderia encontrar trabalho - e uma amiga até se ofereceu para hospedá-la.

Quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a surgir na sua região, ela viajou em direção à fronteira entre a Colômbia e a Venezuela. Muitos migrantes venezuelanos estavam vivendo em Cúcuta, a grande cidade mais próxima do lado colombiano da fronteira, muitas vezes em condições precárias de favelas e abrigos temporários.

Ochoa e seus filhos chegaram à ponte da fronteira no início de abril, depois de horas de carona e caminhada desde sua cidade natal, a cidade costeira de Puerto Cabello, a mais de 730 km da fronteira. Mas o governo colombiano já havia fechado todos os postos de controle para evitar a disseminação do novo coronavírus em meados de março.

A única opção que restava a Ochoa para atravessar para Cúcuta era atravessar um das quase 80 trochas (rotas informais) lamacentas, dominada pelo crime pelo rio Táchira., na área de Cúcuta. Segundo ela, o local é controlado por gangues de criminosos, guerrilheiros e grupos paramilitares.

No primeiro dia, Gabriela Ochoa disse que implorou às pessoas que seguiam pela trocha que a ajudassem a cruzar, sem sorte. Naquela noite, ela dormiu na rua com seus filhos, seus estômagos roncando de fome. No final do segundo dia, quando o céu escureceu, um jovem finalmente se ofereceu para ajudá-la.

Quando a mulher e as crianças se aproximaram da água, um grupo de homens emergiu dos arbustos, as cabeças cobertas por moletons.

“Eles tinham armas, facas, todos os tipos de coisas”, lembrou a mulher. Os homens agarraram seus filhos e ameaçaram levá-los embora se ela não pagasse para atravessar.

“Achei que eles iam me matar e matar as crianças”, contou. Em lágrimas, Ochoa disse-lhes que não tinha dinheiro e implorou que os deixassem atravessar o rio. Os homens a arrastaram para trás de um arbusto e a estupraram.

"Foi horrível. Graças a Deus que não machucaram as crianças”.


A partir de meados de março, conforme as taxas de infecção de Covid-19 cresceram exponencialmente na América Latina, a maioria dos países na região fechou as fronteiras para conter a propagação do vírus. Mas tais medidas colocam as mulheres em maior risco, de acordo com grupos de direitos humanos, funcionários do governo e pesquisadores.

Por anos, a Colômbia recebeu o grosso de venezuelanos desesperados que cruzam a fronteira em busca de alimentos, remédios e abrigo. O governo forneceu assistência médica, escolaridade e algumas oportunidades de emprego para os venezuelanos em fuga. No entanto, o fechamento da fronteira da pandemia não deixou nenhum caminho seguro para esses migrantes fazerem a travessia, expondo mais mulheres aos abusos sexuais, sequestros, tráfico e assassinatos que são endêmicos nas rotas informais.

Desde o início da pandemia, organizações humanitárias afirmam que houve um aumento acentuado na violência de gênero nas regiões de fronteira. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) relata um aumento de 7% no número de mulheres hospedadas em seus três abrigos em Cúcuta dedicados a mulheres vítimas de violência sexual, tráfico e mães solteiras, em comparação com o mesmo período em 2019 (a partir de abril a agosto). Das 257 mulheres que o Acnur apoiou, a agência diz que quase metade havia sofrido violência de gênero.

Mas o aumento da violência sexual e de gênero na fronteira da Colômbia com a Venezuela é anterior à pandemia. Em 2019, a Profamilia, uma das principais organizações de direitos sexuais e reprodutivos da Colômbia, disse que apoiava 573 mulheres venezuelanas vítimas de violência sexual em suas clínicas, um aumento de 92% em relação a 2018. As regiões fronteiriças de La Guajira e Norte de Santander, onde Cúcuta está localizada, acumularam o maior número de ataques relatados.

O que está levando os venezuelanos a cruzar a fronteira não mudou, disse Lucía Hernández, advogada da organização internacional Women's Link Worldwide. Isso inclui o medo da violência, dificuldades financeiras e poucos serviços básicos devido à economia em declínio. Mas o fechamento da fronteira “condena os migrantes a travessias irregulares”.

Fronteira entre Colômbia e Venezuela
Fronteira entre Colômbia e Venezuela
Foto: Reprodução/Google Maps

Um caminho traiçoeiro

Mais de 5.000 pessoas estão atravessando atualmente em ambas as direções através das trochas diariamente, segundo a FundaRedes, uma ONG venezuelana que monitora abusos de direitos humanos nas regiões de fronteira.

Segundo a ONG, desde o fechamento em março, homicídios nas regiões da fronteira venezuelana aumentaram 28,7% em comparação com o mesmo período de 2019 (abril a junho). Os desaparecimentos aumentaram 83,3%, com os maiores aumentos em Táchira, a região fronteiriça mais próxima de Cúcuta. O Projeto Fuller não recebeu resposta da polícia de fronteira venezuelana sobre esses aumentos.

“Grupos [armados ilegais] controlam o território. Eles ameaçam a integridade das mulheres, muitas vezes com o objetivo de tráfico sexual ou trabalho forçado", relatou Javier Tarazona, diretor da FundaRedes. “A Covid-19 tornou o contexto da fronteira mais opressor e violento”.

Muitas mulheres venezuelanas foram atraídas para a Colômbia com ofertas de emprego fraudulentas e depois forçadas ao tráfico sexual, de acordo com um relatório recente do UNODC. De acordo com o documento, o número de estrangeiros traficados para a Colômbia até agora neste ano já era 20% maior em maio do que em todo o ano de 2019. Mais de 90% das vítimas eram mulheres venezuelanas.

O secretário de Fronteiras e Cooperação da Colômbia em Norte de Santander, Victor Bautista, diz que o governo estava ciente do risco de expor os civis a mais violência com o fechamento da fronteira, mas não esperava que a medida durasse tanto.

“As mais vulneráveis estão mais expostas ao tráfico humano, abuso e exploração sexual”, disse.

Quando Ochoa finalmente conseguiu chegar ao lado colombiano do rio, já estava escuro. Seus três filhos não paravam de chorar. Ela teve muito medo de ir à polícia e relatar o que havia acontecido. Segundo Ochoa, os homens ameaçaram matá-la se contasse a alguém, e ela não conseguia descrever com precisão seus rostos. E, mesmo se ela pudesse descrevê-los, ela temia que as autoridades pudessem deportá-la por não ter documentos.

“Estou sozinha aqui", contou. “Não tenho ninguém para me defender”.

A falta de status legal impede muitas mulheres venezuelanas e estrangeiras de buscarem justiça na Colômbia. Quando as mulheres denunciam violência sexual e crimes cometidos na fronteira, eles raramente são investigados e processados, de acordo com organizações de mulheres locais.

Em alguns casos, quando ocorrem abusos nas margens do rio, a polícia afirma que não pode investigar um crime fora do território colombiano. Muitas mulheres não confiam nas instituições de aplicação da lei, porque os membros da polícia e das forças armadas são frequentemente os próprios perpetradores, como contaram várias organizações e mulheres migrantes à CNN.

“Quando mulheres migrantes são abusadas, a quem elas recorrem?" perguntou Adriana Pérez, diretora do Observatório de Gênero de Cúcuta. "Geralmente, eles dizem para ir à polícia. Mas o que acontece quando é um policial que abusa delas? Ou se são grupos armados, sob o conhecimento da polícia?”

“Não são atos cometidos apenas por grupos armados ilegais”, acrescentou. “E é por isso que é tão complexo lidar com eles, porque os agentes institucionais parecem ser cúmplices”.

A polícia de Cúcuta disse ao Projeto Fuller que só recebeu uma denúncia de violência sexual desde o fechamento da fronteira em março, e não tem conhecimento de nenhum caso envolvendo agentes da lei. As autoridades colombianas disseram que estão tomando medidas para fortalecer os padrões de denúncia e identificação de crimes sexuais e de gênero. “É hora de passar da percepção para as queixas formais”, opinou Bautista.

As autoridades militares colombianas não responderam ao pedido de comentários do Projeto Fuller.

Durante a pandemia, a falta de atenção às necessidades das mulheres migrantes piorou na Colômbia, segundo a Women's Link Worldwide e a Corporación Mujer Denuncia y Muévete. Como os recursos nacionais de saúde foram reorganizados para lidar com o vírus, muitos abrigos e refeitórios para migrantes administrados localmente fecharam temporariamente. Mulheres migrantes dizem que tiveram mais problemas para acessar serviços médicos, mesmo quando seus casos eram urgentes e vitais, com casos que envolvem desde cuidados maternos até acesso a anticoncepcionais.

Enquanto isso, abrigos e serviços dependentes de ajuda estrangeira dos principais doadores, como os EUA, reduziram alguns serviços para aderir ao distanciamento social, de acordo com o Acnur.

Desde abril, o Comitê Internacional de Resgate (IRC) diz que a organização ajudou 58 mulheres venezuelanas em Cúcuta oferecendo recursos de saúde e outros serviços de emergência. Há outras 196 em lista de espera para apoio psicológico individual.

Há um aumento na violência física e psicológica acontecendo dentro das famílias (provavelmente mulheres vivendo com seus agressores) desde abril, bem como mulheres sendo psicologicamente assediadas e ameaçadas pelos donos dos imóveis onde vivem, que se aproveitaram de sua incapacidade de pagar o aluguel durante a pandemia, de acordo com o IRC.

Moradia segura durante Covid-19 é uma das principais preocupações das mulheres migrantes. No caso de Ochoa, a amiga que concordou em hospedá-la em Cúcuta não poderia mais: ela havia sido despejada.

Sem ter para onde ir, Ochoa dormiu na rua com seus três filhos. Depois de três dias, uma colombiana que viu Ochoa mendigando na rua os levou para casa e permitiu que ficassem temporariamente em um pequeno quarto nos fundos da casa.

Depois de três meses morando com a colombiana e sua família, eles pediram que ela fosse embora. Ela encontrou uma cabana com lonas de plástico fazendo as vezes de paredes em uma favela fora de Cúcuta, lotada com outros migrantes venezuelanos como ela. A construção precária não tem energia nem encanamento. Ela luta para pagar o aluguel, de cerca de US$ 40 por mês.

O custo de voltar atrás

Gabriela Ochoa não conseguiu encontrar um emprego estável desde que se mudou para a Colômbia, há sete meses. Em vez disso, ela perambula pelas ruas de Cúcuta implorando por dinheiro com seus filhos, preocupada que eles possam contrair Covid-19. Na maioria dos dias, ela ganha apenas o suficiente para alimentar as crianças.

Nos últimos meses, mais de 100 mil venezuelanos que inicialmente fugiram para a Colômbia e outros países da região voltaram à Venezuela através dos pontos da fronteira colombiana, impulsionados pela crise econômica regional da pandemia, de acordo com as autoridades de migração colombianas. Mas estima-se que cinco milhões ou mais venezuelanos permaneçam fora do país, segundo o Acnur. A situação tem sido descrita como o maior deslocamento de massa desde o início da Guerra da Síria em 2011.

Ochoa diz que, apesar da situação precária na Colômbia, ela não vai voltar para a Venezuela tão cedo. “Pelo menos aqui temos comida e um lugar para ficar”, contou. Depois que a Colômbia suspendeu o lockdown no início de setembro, centenas de venezuelanos começaram a fazer as malas novamente, prontos para fugir de uma crise econômica e de saúde ainda mais sombria. A fronteira, porém, ainda está oficialmente fechada.

As trochas lamacentas são o único caminho.

Marta Martinez é uma repórter colaboradora com O Projeto Fuller, uma redação internacional sem fins lucrativos que reporta sobre questões globais que afetam as mulheres. 

 Nota do editor: A CNN está empenhada em cobrir a desigualdade de gênero onde quer que ela ocorra no mundo. Esta reportagem é uma colaboração entre a CNN e o The Fuller Project e faz parte de As Equals, uma série contínua.

 

 

Fonte:CNN Brasil 

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