Comandante da PM afirma que benefício de prisão domiciliar por conta da pandemia é responsável pelo crescimento de tiroteios
As noites e madrugadas não têm sido as mesmas para os moradores dos
bairros periféricos de Salvador. As rajadas de tiros se intensificaram
no segundo semestre deste ano, perfurando não só o silêncio, mas,
também, encontrando carros, janelas, portas e corpos na disputa
territorial entre as facções. O aumento desses conflitos coincide com a
instalação efetiva na Bahia de uma das maiores organizações criminosas
do país, a facção carioca Comando Vermelho (CV).
A partir de
uma aliança com o Comando da Paz (CP), desde o mês de julho, o CV passa a
ter o domínio dos territórios antes controlados pelo CP, inclusive o
complexo do Nordeste de Amaralina (Nordeste de Amaralina, Santa Cruz,
Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho), reduto da facção baiana,
que segue ocupado por cerca de 700 policiais entre civis e militares.
“Essa ação tem vários objetivos e um deles é evitar que essa organização
de fora se crie na Bahia, tendo em vista a atuação dela em outros
estados. Não dá para cravar que a presença tem a ver com esses episódios
neste segundo semestre, mas há uma coincidência aí e a nossa
Superintendência de Inteligência (SI) da Polícia Civil está atuando”,
disse ao CORREIO, um delegado titular de uma das unidades onde houve o
aumento dos confrontos entre criminosos.
De acordo com a
Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), a mega operação no
complexo tem “como objetivo combater facção que atua na localidade e
evitar a formação de bondes que planejam crimes e tentam expandir o
domínio pelo tráfico de drogas em outras regiões”.
Já o
comandante de Operações Especiais da Polícia Militar (PM), coronel
Humberto Sturaro, atribuiu o crescimento dos confrontos entre bandidos
de Salvador aos presidiários beneficiados com a prisão domiciliar por
conta da pandemia. “Devido ao risco de contaminação pela covid-19, esses
criminosos foram postos em liberdade e retornaram aos seus bairros,
onde antes eram líderes. Agora, querem retomar o terreno dos rivais, é
isso que está acontecendo”, explicou.
Sturaro disse que, assim como a polícia ocupou o
Complexo do Nordeste de Amaralina, Engenho Velho da Federação,
Sussuarana, Bom Juá, ainda neste ano, outros bairros também terão a
presença maciça da PM por um período indeterminado. “Essas ações não vão
parar e daremos sim uma reposta adequada à criminalidade, ocupando
outros bairros onde há uma situação mais expressiva da violência”,
declarou, antes de dizer que desconhece a instalação do CV na Bahia.
Guerra
Os faccionados do CV têm, por
hábito, assediar criminosos locais apresentando supostos “benefícios”,
como o auxílio de advogados e acesso mais barato a entorpecentes. Com a
aliança, o CP conta com suporte de traficantes cariocas para os ataques
em massa a rivais da Ordem e Progresso (OP) e do Bonde do Maluco (BDM).
No dia 20 de novembro, por exemplo, criminosos promoveram uma noite de
terror no bairro de Plataforma. Pouco mais de 40 bandidos, todos do
Complexo do Nordeste de Amaralina, chegaram atirando com fuzis e
metralhadoras. Foram inúmeros confrontos com integrantes do Bonde do
Maluco (BDM), que atuam no local.
Moradores relataram que os tiroteios começaram por volta das 20h. “Foram
muitos tiros. Foi um cenário de guerra. Ninguém entrava e saia do
bairro. Os ônibus voltaram. Nunca tinha passado por isso antes”, disse
uma moradora por telefone ao CORREIO. No confronto, os tiros atingiram
casas, carros e estabelecimentos comerciais.
As ações do CV
vêm provocando outros conflitos armados. Temendo um ataque do CV, grupos
criminosos estão invadindo territórios de outras facções como tática de
intimidação. “É a forma que eles têm de se proteger. Querem mostrar
para o CV que são fortes e para isso vão para cima do oponente vizinho. É
o caso do Bom Juá”, disse um policial militar que trabalha na região de
São Caetano, fazendo referência aos episódios recentes no bairro entre
as facções Ajeita e o BDM.
A situação é a mesma em Castelo
Branco no 24 de outubro, quando três pessoas foram assassinadas em
horários distintos. As mortes foram atribuídas ao BDM. O primeiro caso
aconteceu por volta das 5h30, quando o dono de um bar teve a casa
invadida e foi baleado diversas vezes – o corpo dele foi jogado pela
janela e os criminosos suspeitavam que a vítima tinha uma relação com um
grupo rival. Por volta das 16h40, um rapaz foi cercado e baleado
durante confronto. Ele morreu no local. Por fim, porco depois da 18h, um
homem de 35 anos foi morto na localidade conhecida como Creche, onde
traficantes trocaram tiros.
No mês de outubro, o CV instalou
barricadas de tuneis cheios com cimento nas entradas do bairro do
Uruguai. O objetivo das barreiras, similares as que são colocadas no Rio
de Janeiro, foi impedir a entrada das viaturas das polícias Militar e
Civil. Uma equipe da Transalvador foi acionada pela PM e removeu os
materiais com a ajuda do guincho.
RMS
Temendo que o aumento da violência em Salvador seja refletido na cidade
de vizinha de Lauro de Freitas, a PM da região vem há duas semanas
intensificando ações nas principais vias de acesso ao município. Segundo
o comandante da 52ª Companhia Independente (Lauro de Freitas), major
Everton Monteiro, a estratégia é evitar que, diante das recentes ações
de enfrentamento da polícia no Complexo do Nordeste e em outros pontos
de Salvador, traficantes migrem para Lauro.
“Estamos com
barreiras montadas na Estrada do Coco, Buraquinho, Lauro, Vilas do
Atlântico. São 60 policiais atuando nos horários de maior movimento,
afim de evitar a instalação deles aqui”, disse o comandante. O controle
do tráfico de drogas em Lauro de Freitas é disputado pelo CP (CV) e o
BDM. “Embora tenhamos organizações criminosas em nosso território,
estamos há três meses sem mortes intencionais e isso se dá com ações
mais enérgicas das polícias civil e militar, com prisões, apreensões de
armas e drogas”, contou.
Um delegado que atua na região não
escondeu a preocupação de as cidades da Região Metropolitana sofrerem um
efeito cascata referente ao aumento dos confrontos de Salvador. “Não
tem como não estar. Lauro, Simões Filho e Camaçari, por exemplo, são
muito próximas da capital e têm tentáculos na RMS. Por enquanto a
situação está controlada, por enquanto”, pontuou.
Neste último mês, ao menos onze tiroteios foram noticiados pelo CORREIO em diferentes bairros de Salvador, o que já fez de novembro o mês mais violento da pandemia na capital, somando 127 pessoas assassinadas, conforme dados dos boletins diários da SSP, compilados pelo jornal. Esse número, inclusive, pode ser muito maior, já que não constam nesses boletins as seis mortes durante operação policial no bairro de Águas Claras.
A SSP vem declarando que informações iniciais apontam que a maioria dessas vítimas na capital têm envolvimento com a disputa pelo tráfico de drogas. O Atlas da Violência 2020 mostrou que a Bahia é o estado com o maior número absoluto de homicídios no país pelo quarto ano consecutivo e — em 2018, ano do levantamento — 90% dos mortos foram pessoas negras, quase todas jovens.
Era uma sexta-feira, 20 de novembro, dia da Consciência Negra, quando 14 pessoas foram assassinadas na capital. Foi o dia mais sangrento do mês. Nesta data, foi registrado 11% do total de óbitos de novembro. Os bairros de São Caetano, São Cristóvão, Lobato e Águas Claras foram os que mais sofreram com assassinatos e constantes trocas de tiros.
Essas supostas disputas entre grupos criminosos têm efeito direto não só na rotina dos bairros, mas também nos presídios da capital, segundo observa o presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários da Bahia (Sinspeb), Reivon Pimentel.
"O clima está tenso e é mais por conta do crescimento das facções criminosas. Até então, nós só tínhamos facções locais e hoje já temos facções organizadas do Rio de Janeiro [Comando Vermelho] e São Paulo [PCC] na maioria das unidades prisionais da Bahia. A chegada de membros dessas facções a Salvador tem deixado a cidade tensa por conta das guerras. O Estado da Bahia não se preparou para fazer frente ao crime organizado e vem agindo de forma amadora”, acredita ele.
As duas maiores facções soteropolitanas, o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando da Paz (CP), se aliaram ao PCC e ao CV, respectivamente. Uma série de operações policiais e ocupações militares se desencadeou na capital nas duas últimas semanas como resposta aos supostos ataques criminosos dessas alianças em disputa. No dia 17 de novembro houve a primeira grande investida da SSP, que resultou na morte do traficante Babalu, líder da facção Bonde do Maluco, em Pernambués. Em vídeos que circulam nas redes sociais, traficantes rivais até soltaram fogos de artifício comemorando a morte dele.
Sem corridas: motoristas evitam áreas em conflito
Preferindo ter a identidade preservada, um motorista de aplicativo
contou à reportagem que tem cancelado as corridas com destino à região
da Av. Suburbana e São Caetano devido às ocorrências de conflito nestas
regiões. Outro dia, quando, por ventura, pegou uma corrida para
Plataforma, fez diversas perguntas ao passageiro e pediu que ele
checasse com um familiar qual era o clima no bairro para que pudessem
chegar em segurança.
“Claro que a gente quer trabalhar para todo mundo. Somos muitos motoristas e não temos como ficar todos concentrados em só pegar corrida em bairro de classe média. Nós passamos por uma grande dificuldade por causa da pandemia e estamos impossibilitados de oferecer um serviço completo por falta de segurança. É muito complicado. A gente sai de casa pedindo a Deus para nos levar e nos trazer. O problema não é nem alguém me roubar, é a gente entrar no bairro e tomar uma bala perdida”, relata.
Segundo ele, os profissionais até andam desenvolvendo estratégias próprias para continuar transportando pessoas para esses locais. O motorista conta que os colegas têm cuidado uns dos outros monitorando os trajetos pelo WhatsApp. Quando um deles pega uma corrida para uma região em que avalia ser de risco, avisa logo no grupo. “Quando a gente sabe que um colega está indo para a Av. Suburbana, ou um bairro que requer atenção redobrada, fica todo mundo apreensivo perguntando Fulano já saiu de tal lugar?”, conta.
CONFIRA O MAPA E CRONOLOGIA DOS CONFLITOS:
Comércio fechado
Um comerciante
de Águas Claras contou, também sob anonimato, que os conflitos têm
acontecido mais no fim de linha e, mesmo morando mais acima, ele não
fica imune aos efeitos desse clima tenso. O morador diz que as pessoas
têm deixado de circular na rua de manhãzinha por receio de receber bala
perdida, o que, no fim das contas, é ruim para o seu negócio porque
reduz a clientela.
“O comércio fechou na última semana e quem precisou comprar algo não pode por causa desse risco. Queremos que a polícia faça o papel dela, a população tem que apoiar, mas a gente não aceita truculência. A polícia tem que colocar inteligência na rua para fazer operações acertadas e inocentes não venham a ser afetados”, diz ele.
Outro morador de Águas Claras está um tanto desesperançoso quanto ao papel das instituições públicas no combate ao crime. "Tiro aqui não é novidade. O problema é que as pessoas que fazem a gestão não sentem na pele o que nós vivemos. Maurício Barbosa, o secretário estadual de segurança, não vive isso. Às vezes, a gente perde a sensibilidade. Quando eu era adolescente e via um corpo no chão, aquilo me deixava mal por semanas, eu ficava triste como as pessoas não ligavam. Hoje eu me vejo fazendo o que eu julgava", lamenta.
Nas Cajazeiras, onde oito foram mortos, um morador relata que dois eram seus conhecidos. “Sou mais um morador que anda assustado, olhando para os quatro lados todos os dias para poder ir ao trabalho. Cajazeiras tem passado um sufoco. O bairro já tem uma companhia da Polícia Militar, queremos mais? Para quê? Precisamos de estratégia, do serviço de inteligência”, completa.
Posicionamento
O CORREIO
solicitou uma entrevista com um porta-voz da SSP-BA para tentar entender
o que, afinal, está havendo na cidade. Por telefone, o diretor do
Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Marcelo Sansão,
afirmou que as polícias estão acompanhando todos os grupos criminosos em
disputa e suas respectivas áreas de atuação, “e que a resposta será
dada”. A reportagem perguntou ao diretor quais bairros tiveram o
policiamento reforçado na capital em função destes conflitos armados,
mas não teve resposta. O diretor também não disse quais são as facções
que estão em disputa.
“Existe um movimento de preocupação com a entrada de facções externas da Bahia, mas nós não somos Rio e São Paulo. Não vamos deixar que grupos externos criem uma situação que ocasione realidades que não são as nossas. A gente reporta como um fator negativo a soltura de lideranças do tráfico. Houve uma piora no quadro, milhares de presos foram liberados. Existe um problema legal e nosso papel é ser persistente e vamos prender e recuperar onde [os criminosos] estiverem, onde estiverem vamos buscar”, afirmou Sansão.
Analistas da segurança pública
Especialista em administração de sistema prisional e professor de Gestão
Pública do Insper, Sandro Cabral prefere não afirmar que exista uma
causalidade entre a soltura de presos por causa da pandemia e essa
repentina explosão de casos de tiroteios. “De toda sorte, não se pode
descartar”, diz. O professor cita que algumas facções do Rio de Janeiro e
São Paulo começaram a ter tentáculos no país e é comum que essas
organizações criminosas de fora se aliem com o crime organizado local,
que já conhecem o mercado, as demandas e os conflitos.
Em Salvador, pichações feitas nos bairros de Santo Inácio e Nordeste de Amaralina têm indicado que a facção local Comando da Paz (CP) se aliou ao grupo carioca Comando Vermelho (CV). Há dois meses, um dos traficantes mais agressivos do Rio de Janeiro foi preso aqui num hotel da Pituba e com ele foram achados mais de R$ 61 mil em dinheiro. Essa chegada de grupos poderosos de fora pode, inclusive, motivar novos conflitos por disputa de territórios de atuação, aponta Cabral. Segundo a SSP, essa vinda não passa de “boato”.
O professor lembra que a pandemia gerou uma diminuição das atividades de todas as organizações, inclusive do próprio tráfico de drogas e, como esse mercado ilegal sofreu baixas de recursos devido as apreensões, abriu-se espaço para a tomada de pontos de facções rivais. “E boa parte das mortes pode-se mesmo colocar na conta disso”, adianta. “É final de ano, tem mais dinheiro circulando, então tem uma série de fatores que começam a influenciar”, soma ele.
Para tratar desse problema público, o especialista reitera que a melhor saída é mesmo agir com menos violência e mais inteligência, com trocas contínuas de informações entre as forças policiais estaduais e federais. “A escalada violenta por parte da polícia não parece ser o caminho. Operações boas são as que, sem dar um tiro, desbaratam uma quadrilha inteira. E isso requer um trabalho de investigação, de formiguinha, de avaliar a dinâmica do crime, colher informações. Sou morador de Salvador e tenho acompanhado com pesar essas mortes e o mês ainda não acabou”, completa.
O coordenador do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Lassos/Ufba), Luiz Claudio Lourenço, aponta que os moradores das áreas de disputa de facções do tráfico de drogas vivem em meio a um fogo cruzado.
“O risco para a pessoa é diário. No meio dos conflitos entre os grupos, as pessoas tentam encontrar formas de sobreviver no local ou sair dali. As operações também acabam perturbando a vida do morador. Existe toda uma dinâmica violenta associada ao comércio de drogas e isso é agravado com a violência do estado. Nesse campo de batalha, o morador pode ser vitimado”, afirmou.
MORTOS POR MÊS EM SALVADOR (2020):
Dados: Boletins SSP-BA
Março - 106
Abril - 122
Maio - 79
Junho - 71
Julho - 66
Agosto - 73
Setembro - 81
Outubro - 106
Novembro - 127
Correio 24 horas
0 Comentários