Oferendas, alimentação e o sagrado em diversas tradições

 Chalá, o pão trançado da tradição judaica | Foto: Alex Oliveira | Ag. A TARDE - Foto: Alex Oliveira | Ag. A TARDE

Há muitas formas da fé se expressar, independentemente do credo que se professe. Na Bahia, a devoção aos santos e divindades é forte nos terreiros de candomblé, mas também fora deles. Saudar Iemanjá no Rio Vermelho, por exemplo, é uma tradição com quase 100 anos que arrasta uma multidão para o bairro.

Quem não perde a festa do dia 2 de Fevereiro é Angélica Moreira, chef do restaurante Ajeum da Diáspora. Mas, além de curtir a festa, propriamente dita, no berço de Iemanjá, ela tem outra forma de celebração.

Hoje, se não fosse a pandemia do novo coronavírus, Angélica estaria servindo a sua tradicional feijoada de frutos do mar no restaurante, na festa que batizou de Esperando Iemanjá. No quintal da sua casa no Tororó, todo domingo antes do dia da Rainha das Águas, ela prepara a iguaria que leva feijão fradinho, sururu, lula, polvo, bacalhau e mexilhão.

“Sou do candomblé, mas independentemente disso, acho que a crença em Iemanjá vai além da religião", diz. Neste ano, não vai ter festa, mas a feijoada para a família está garantida.

Ela conta que além de todo cardápio voltado para os frutos do mar, faz decoração temática para homenagear a divindade. “Gosto de fazer a homenagem, de saudar a Grande Mãe da fartura, dos peitos grandes, que é o mesmo peito que acolhe e alimenta a humanidade”.

Angélica explica que no candomblé tudo passa pela cozinha: “Desde quando chegamos ao Brasil, vários povos diferentes, foi a alimentação que nos sustentou, porque a comida nos fortalece”.

Na culinária afro-baiana, vários itens atualizam essa memória, como o inhame, o quiabo, o azeite, as raízes, e Angélica descreve a cozinha africana como enigmática: “Consagramos os alimentos aos deuses. Primeiro, os deuses comem a comida sacralizada, como popularmente falamos, ‘arrear aos pés do santo’, e depois, outra parte da comida é compartilhada na festa, na celebração. É o ajeum, que significa comer junto, a comida que o orixá comeu”.

E está muito enganado quem pensa que o oferecimento de alimentos aos deuses é exclusividade do candomblé. Em diversas religiões, essa prática existe. No budismo, por exemplo, são oferecidas frutas, água, arroz cozido e folhas verdes.

Bolinho

De acordo com a empreendedora Ana Bárbara, 52, budista desde os 15 anos, o moti, um bolinho de arroz pilado, tradicionalmente consumido pelos japoneses na celebração de Ano Novo, era oferecido ao Buda e que a figura da divindade é a de um homem gordo por causa da quantidade de moti consumida. E isso tem um grande significado nas escrituras utilizadas até hoje.

Atualmente, principalmente no ocidente, é difícil encontrar famílias que ainda ofereçam o moti, mas as mais tradicionais ainda o fazem. E no xintoísmo, também há o costume de oferecer o moti. Independentemente da quantidade do bolinho preparado no Ano novo, os dois primeiros montes devem ser feitos maiores. O par desses bolinhos são chamados de kagami moti, destinados ao oferecimento à divindade dos grãos e cereais, acompanhado de uma oração.

Ana, que integra o Budismo de Nichiren, uma das vertentes da religião, não segue as práticas de oferecimento do moti, mas tem em sua casa um altar, o seu oratório, em que costuma oferecer frutas em gratidão à vida. “Cada um oferece o que quer, e não há nenhuma obrigatoriedade, mas é um costume”.

Agradecer e se alimentar

No budismo, diferentemente do candomblé – em que a parte da comida ritual oferecida aos deuses não se pode comer – apenas se oferece aquilo que se consome e as pessoas comem o alimento após tirá-lo do altar.

“Nós oferecemos algo que faz parte da nossa vida. Ganhei algo diferenciado, gostoso, eu ofereço, porque oferecemos aquilo que é bom para a gente”, diz Ana.

Ela conta que compra frutas e faz oferendas das mais bonitas mais ou menos uma vez por semana. “Oferecemos as frutas em gratidão aos benefícios recebidos, em gratidão por estarmos bem, pela vida, em conexão com o universo. Porque tanto o alimento quanto a espiritualidade nutrem a minha vida”. No seu altar, Ana faz orações todos os dias, pela manhã e à noite.

A relação entre comida e religião é muito antiga. De acordo com o antropólogo Vilson Caetano, as chamadas grandes religiões elegeram o que chamaram de grãos civilizatórios como objetos de cultos e adoração.

Não apenas grãos, mas também as raízes, como a mandioca, que para os povos indígenas é vista como corpo ancestral, o inhame e outros alimentos que, para alguns grupos africanos, são considerados o pão nosso de cada dia. Aquilo que é considerado comida de sustento é objeto desde cedo de adoração e visto como um dom dos deuses.

E como já se sabe, não é algo exclusivo de um modelo religioso, mas, para o antropólogo, é inegável que as religiões de matrizes africanas permitem perceber essa relação de forma mais nítida.

Isso porque os terreiros de candomblé ou as religiões de matrizes africanas ajudam a perceber de fato esse conceito, já que dentro dos terreiros a comida é o meio, o veículo pelo qual os filhos de santo e as pessoas conversam com as divindades.

“Nos terreiros, além dos ancestrais se apresentarem na forma de comida, o acarajé é o corpo ancestral de Iansã, e o acaçá é o corpo de Oxalá. Não que essas comidas no candomblé representam a divindade, mas elas são a própria divindade, muito parecido com a ideia de transubstanciação. Como o pão e o vinho não representam o corpo de Cristo, mas são o corpo de Cristo. As comidas e os terreiros são e representam ao mesmo tempo o próprio orixá”, explica.

Comidas favoritas

Ainda de acordo com Vilson, os orixás quando chegam ao mundo se mostram através do corpo das pessoas, da natureza, da dança e também da comida. E, por esse motivo, conseguimos elaborar o que os orixás gostam de comer.

A lista é grande, mas cada um tem a sua comida favorita. Por exemplo, Exu, o princípio da comunicação, come tudo, mas gosta sobretudo de farofa de azeite de dendê e bebe cachaça. Já os orixás guerreiros, como Ogum, comem comidas rápidas e aferventadas e gostam muito de carne, por isso, são oferecidas aqui uma feijoada com muitas carnes.

Assim como no candomblé tudo tem um sentido, quando se fala de cozinha judaica, tudo tem uma relação com a religião. A culinária, por exemplo, é baseada em um sistema das leis alimentares e Kosher é o nome dado ao conjunto de regras no preparo e consumo dos alimentos que seguem essas leis.

No entanto, não é considerado um estilo de culinária, já que diversas comidas de outras tradições, de japonesa à italiana podem ser Kosher, desde que preparadas de acordo com as tais regras.

Sulamita Tabacof, autora do livro Beabá da Bessarábia à Bahia – Histórias e Receitas (Ed. Corrupio), conta como funcionam as cozinhas e as mesas dos judeus: “Tudo é muito cuidadoso da compra ao preparo e da cozinha à mesa. Tem que ter duas pias, para não correr o risco de misturar alimentos como leite e carne, por exemplo”.

À risca

De forma alguma, as carnes podem ser preparadas, servidas ou consumidas com o menor resquício que seja de leite ou seus derivados. Isso deve ser seguido à risca e vai além dos alimentos. Também deve contemplar as panelas, louças, talheres, fogão, forno, liquidificador, batedeira. Na casa tem que ter tudo em dobro, um para o leite e outro para a carne.

Quem segue esses princípios, também não pode comer todos os tipos de carnes. Os frutos do mar não são permitidos e peixes apenas os que possuem escamas e barbatanas, porque têm proteção própria.

De acordo com Sulamita, consumir carne suína é um dos maiores pecados no judaísmo, e os animais liberados são só os que têm o casco fendido, como o boi, e ele não deve ter o menor sinal de doenças ou ferimentos para ser abatido.

Ela conta que nos locais onde se exportam carnes, por exemplo, como o Brasil, há um religioso que faz essa inspeção.

O consumo de pães é alto, e singular, nos ritos judaicos. “Um dos principais é a Chalá, pão trançado consumido no Shabat, o sábado, considerado o dia santificado na maioria das festas judaicas”, conta Sulamita.

Na Páscoa ou Pessach, não se pode consumir nada que tenha fermento, então, o principal alimento desse dia é o pão ázimo ou o matzá, um pão sem fermento e sem farinha branca.

Em muitas religiões, o aspecto da alimentação tem algum simbolismo. No budismo, além das oferendas, a relação em geral com a nutrição do corpo é algo muito forte. Nele é pregado sempre sobre a saúde e a importância de mantermos uma alimentação saudável.

“Essa relação entre alimentação e religião existe, principalmente, porque as duas visam prolongar a vida”, analisa Vilson. De todo modo, a comida pode, definitivamente, ser vista como um grande elo entre as pessoas e a fé.

A tarde

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