Como chegamos ao pior momento da pandemia? Veja trajetória da covid na Bahia

 

Esse era o texto que ninguém gostaria de escrever. Era o que vínhamos alertando há um ano, em reportagens seguidas de reportagens. Ao longo desse um ano, por esforços de cientistas, autoridades de saúde e de parte da população, conseguiu-se retardar esse momento. Agora, foi impossível. Finalmente, o diagnóstico veio: é a pior fase da pandemia da covid-19 na Bahia. Mas por que agora?

O caminho até aqui envolveu fechamentos, restrições e preocupação, seguidos de reaberturas e relaxamentos. Teve cantoria nas janelas, de quem não saía de casa, e também aglomerações e festas clandestinas. Mas, desde o começo do ano, o governo estadual e a prefeitura de Salvador alertavam que os ventos estavam prestes a mudar.

Cada dia dessa última semana só pareceu reforçar esse cenário e torná-lo mais dramático. Primeiro, um toque de recolher desde o dia 19. Dois dias depois, batíamos 80% de ocupação dos leitos de UTI e o horário da restrição de circulação teve que ser ampliado. Isso pareceu não ser suficiente para assustar parte dos baianos: na terça-feira (23), último dia antes da interdição das praias em Salvador, correram imagens do Porto da Barra lotado. Entre tantos banhistas, dava para contar os que usavam máscara. 

Banhistas encheram o Porto da Barra na terça-feira (23), último dia antes da interdição das praias em Salvador (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

Por isso, não foi surpresa quando a Secretaria Estadual de Saúde (Sesab) concluiu que o toque de recolher, sozinho, não adiantou: na última quinta-feira (25), veio o anúncio de uma lockdown parcial. Das 17h de sexta-feira (26) até as 5h de segunda (1°), todos os serviços que não forem essenciais devem permanecer fechados. Se tudo pareceu convergir para este fim de semana, é possível que o futuro próximo também dependa do resultado dele.

Mas como chegamos até aqui, se parecia estar tudo bem? Há menos de um mês, se anunciava a reabertura de cinemas e teatros, além da ampliação do horário de funcionamento dos shoppings. A chave da questão pode estar justamente aí: só parecia que as coisas estavam bem. 

“A gente considera que essa crise é mais grave”, admite a subsecretária estadual da Saúde, Tereza Paim, apresentando alguns números que ajudam a dar essa dimensão. O primeiro vem dos testes: atualmente, mais de 50% das amostras que chegam ao Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) são positivas para covid-19. Isso nunca aconteceu, nem entre os meses de junho a agosto do ano passado, considerados antes o pico da pandemia aqui.  Só para dar uma ideia, de março a julho, 29,43% dos testes tinham resultado positivo. 

A própria pasta foi diretamente afetada pelo aumento recente de casos: o secretário estadual da Saúde, Fábio Vilas Boas, foi diagnosticado com a doença na semana passada e segue internado na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Aliança.

Marcos temporais
A semana não podia ser mais cheia de simbologias.  Há um ano, em 24 de fevereiro de 2020, o Brasil tinha o primeiro caso confirmado de covid-19. Na Bahia, não é preciso fazer muito esforço para lembrar de outros marcos temporais do tipo: na última quinta-feira (25), completou um ano que a primeira infectada pelo coronavírus desembarcou no estado. 

Embora a confirmação só viesse no dia 9 de março, foi no dia 25 de fevereiro de 2020 que a moradora de Feira de Santana chegou a Salvador, depois de uma viagem à Itália. Alguns dias depois, assistiríamos ao colapso do sistema de saúde do país europeu.

Também na quinta-feira, o Brasil registrou o maior número de mortes em um dia, desde o começo da pandemia: 1.582, de mais de 251 mil vítimas no total. Para a pesquisadora Ethel Maciel, doutora em Epidemiologia e professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), esse é o pior momento em todo o país. 

“O que está acontecendo é que estamos em momentos diferentes (nos estados). O que aconteceu em Manaus, por exemplo, foi muito pior do que na primeira onda. Por que é pior agora? Porque a gente tem essas variantes, como a do Reino Unido e a do Amazonas, que são mais transmissíveis”, explica, referindo-se também ao colapso da saúde em Manaus, em janeiro, quando chegou a faltar até oxigênio para os pacientes

 

Por mais que ainda não se saiba se as novas cepas levam a casos mais graves, pesquisadores de Manaus indicam que os casos por lá evoluíram mais rapidamente. No Reino Unido, já foi identificado que, a cada mil pessoas com 60 anos ou mais infectadas com a mutação, 13 morrem. Antes, esse índice era de 10. 

Mesmo assim, ainda não dá para afirmar nada sobre o impacto delas no Brasil. O que se sabe é que, desde janeiro, o país bate mais de mil mortes diárias - as únicas exceções são alguns finais de semana, quando alguns estados demoram mais a fechar os balanços.

“Temos autoridades repetindo os mesmos erros com variantes muito mais transmissíveis. Mesmo os estados com muitas mortes estão com tudo aberto. Fim de ano, Carnaval. Fazendo alguma coisa agora, a gente só vai ver reflexo daqui a duas, três semanas. As medidas de contenção agora são para prevenir o futuro, porque o que está acontecendo agora não tem mais jeito”, completa Ethel. 

Situação nos gripários de Salvador também é preocupante nos últimos dias (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

Sim, pode piorar 
O pior momento poderia ter chegado antes, como pondera o médico de família Washington Luiz Abreu, professor da Ufba e da UniFTC. No entanto, a Bahia conseguiu atrasá-lo ao máximo. “Não é um prazer estar falando isso. Mas conseguimos, num estado como o nosso, que é acolhedor, empurrar a crise um ano para frente exatamente porque tivemos as medidas sanitárias. O que estamos vivendo hoje poderíamos ter vivido seis meses atrás”. 

Há quem diga que esse momento não vai passar logo. Ou, ainda, que é um prenúncio de tempos mais difíceis. 

A Rede Covida foi uma das entidades que se posicionou sobre isso, ao emitir uma nota na quinta-feira em que definiu a situação como “a antessala do caos”. Formada por cerca de 200 pesquisadores e comunicólogos, sendo a maioria da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e da Fiocruz, a Rede Covida é um dos principais grupos de cientistas formados na pandemia. 

“Diante do quadro sanitário e político, imprevisível e assustador, e com o objetivo de proteger a vida de todos nós, acreditamos que são necessárias e urgentes, em diversas cidades do país, medidas mais firmes para reduzir a transmissão da covid-19, com efetivas restrições à circulação e às aglomerações de pessoas”, dizem, no comunicado. 

Para entender melhor como chegamos até essa semana crítica, o CORREIO ouviu pesquisadores, médicos e gestores públicos. Ao final desta reportagem, teremos abordado as principais medidas adotadas no estado - as que deram certo e as que não deram -; o que não foi feito; de quem são as responsabilidades (ou as culpas) e quais são as formas de sair desta crise. 

Bahia chegou ao número recorde de mortes diárias na sexta-feira (26): 137 (Foto: Marina Silva/CORREIO)


De tudo que foi feito, o que deu certo e o que não deu? 

A primeira morte por covid-19 na Bahia veio no dia 29 de março. Duas semanas antes disso, as aulas já tinham sido suspensas e as praias estavam fechadas. Shoppings não podiam abrir, assim como lojas de rua com mais de 200m² que não fossem de serviços essenciais. Viagens de ônibus intermunicipais foram proibidas e até a Rodoviária de Salvador foi fechada. 

Ou seja: muita coisa foi feita, ao mesmo tempo em que o número de leitos exclusivos para covid-19 era ampliado no estado. Até o toque de recolher, que está acontecendo pela primeira vez em Salvador só agora, já tinha sido realizado em cidades do interior do estado. Contudo, mesmo que a avaliação dos gestores seja de que as medidas tenham dado certo, de maneira geral, parte delas não deve ser repetida agora - ao menos, não inicialmente. 

Se, em 2020, Salvador passou incólume ao toque de recolher, outras cidades da Região Metropolitana não puderam dizer o mesmo. Foi o caso de municípios como Camaçari, Candeias, Dias D’Ávila, Itaparica, Lauro de Freitas e Simões Filho, que tiveram a medida em julho. 

Em Salvador, é a primeira vez do toque de recolher, que começou no último dia 19 (Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Para a subsecretária estadual de Saúde, Tereza Paim, no ano passado, o toque de recolher foi efetivo e ajudou a reduzir o espalhamento do vírus. Normalmente, os sinais começam a aparecer dentro de cinco dias - ao menos, da redução da procura por hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs). 

Mas, esta semana, Tereza conversou com o CORREIO na última quarta-feira (24) e contou que, até aquele momento, ainda não havia sinais de mudança. “A gente acredita que talvez até o final de semana, se diminua um pouco a quantidade de atendimentos”, disse, acrescentando que, se até lá o cenário não mudasse, poderiam recorrer a outras ações. 

Não foi necessário chegar ao fim de semana. No dia seguinte à conversa, na quinta-feira, o governador Rui Costa e o prefeito de Salvador, Bruno Reis, anunciaram as novas medidas de restrição. A Sesab explicou que, mesmo com novos leitos, os indicadores e as projeções são de piora - por isso, o lockdown. 

Bares
Entre os especialistas, não há consenso sobre o toque de recolher. O infectologista Juarez Dias, doutor em Saúde Coletiva e professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, é um dos que acredita que não é uma atitude tão efetiva. “À noite, as pessoas vão dormir. Já é um horário que elas estão mais restritas em domicílio”, afirma, defendendo a redução de aglomeração em bares. 
 
Mas é justamente por conta dos bares e restaurantes que o médico de família Washington Luiz Abreu, professor da UniFTC e da Ufba, acredita que pode ser uma boa alternativa.

“Nesses horários da noite é quando estão as aglomerações mais perigosas. Durante o dia, elas acontecem, mas os que circulam acabam se protegendo mais”, avalia ele, que é especialista em medicina preventiva e social e nutrologia.

Pela mesma lógica, ele defende que a medida de interdição das praias - adotada no início da pandemia e resgatada agora - é uma boa escolha. “O lazer do baiano, no final de semana, é praia ou o shopping. O que está no pano de fundo dessa questão é a aglomeração das pessoas”, diz. Já o problema dos shoppings, que chegaram a ser fechados no começo, é justamente a falta de ventilação natural e o uso de ar-condicionado.

Praias foram fechadas novamente esta semana (Foto: Wendel de Novais/CORREIO)

Aberturas
Por meses, o comércio também teve restrições em Salvador e em outras cidades do estado. Nessa nova fase, porém, ainda não foi anunciado. Fechar tudo por 24 horas, para a subsecretária Tereza Paim, pode ter consequências econômicas graves para a população. 

“É uma atitude severa que repercute para um estado que já está mais empobrecido por conta de todas as estratégias que vínhamos tendo até então. É uma decisão muito séria, que a gente depende da própria população. Se as pessoas respeitarem essas semanas de toque de recolher, já terá um efeito. Se não conseguirem, não temos outra opção”, analisa. 

Um dos focos, para o médico Washington Luiz Abreu, deve ser também nos grandes centros de comércio de cada bairro. “Hoje em dia, Salvador tem vários centros. Tem o centro oficial, mas tem o de casa bairro. Muitos deles são frequentados não só pelas pessoas que vivem naquele lugar”, diz, citando locais como Sussuarana e Boca do Rio. 

As escolas, por sua vez, estão fechadas desde março do ano passado. No início do mês, parecia que reabririam. Por um único dia, houve até aula presencial em uma escola de Salvador. No dia seguinte, porém, o governo conseguiu, na Justiça, evitar a continuidade das aulas

Este mês, as escolas particulares chegaram a voltar as aulas presenciais por apenas um dia (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

Especialistas reforçam que elas não estão separadas da comunidade em que estão inseridas. Portanto, não há protocolos de biossegurança que funcionem a partir da porta da escola para dentro.  

“A gente precisa controlar a pandemia na comunidade para que a escola seja segura. Se a criança vive com a família, ninguém usa máscara e ela só coloca quando entra na escola, não funciona. Ela vai se infectar e trazer essa infecção para dentro, porque vai tirar a máscara, beber água, comer, tossir, tocar nas coisas”, pondera a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Ufes. 

Para que as escolas tivessem sido abertas, teria que ter havido uma decisão para fechar todo o resto. Foi essa a postura adotada pela França, que chegou a divulgar campanhas que pediam para que as pessoas ficassem em casa para que as crianças pudessem estudar. Entre deixar shoppings, restaurantes e lojas abertos, os franceses privilegiaram as escolas. 

“Isso não foi de cima para baixo. A sociedade entendeu que é importante a escola estar aberta. Só que a gente aqui não fez essa opção. Agora quer abrir tudo? Não tem condições. Para abrir uma coisa, tem que fechar outra”, completa Ethel. 

Na Bahia, a Secretaria da Educação do Estado (SEC) criou um programa de vale-alimentação para os estudantes e de suas famílias. Os 776 mil estudantes matriculados na rede receberam quatro parcelas de R$ 55 como auxílio. No entanto, segundo a SEC, não há previsão para novas parcelas. 

Enquanto isso, a proibição de viagens intermunicipais, decretada pelo governo do estado, só começou a ser revertida em setembro. Contudo, para o geólogo Washington Rocha, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), seria inútil agora. “A interrupção de viagens municipais não funciona agora pois o vírus já está espalhado”, explica o coordenador do portal Geocovid-19. 

Na avaliação da Sesab, todas as medidas contribuíram, de alguma forma, para evitar que a situação fosse pior - especialmente no começo. Para especialistas como o médico Luis Eugenio de Souza, doutor em Saúde Pública e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba, todas as medidas que restringem a circulação de pessoas são efetivas - o que pode variar é a intensidade ou o rigor com o qual elas são adotadas. 

Contudo, ele acredita que todas as medidas foram ineficazes. Se não fosse assim, defende, não estaríamos enfrentando o aumento de casos e mortes. Segundo ele, a eficácia aí não tem a ver com o fato de que evitar o contato com outras pessoas não seja uma boa medida - pelo contrário - mas por não terem criado condições que permitissem que todas as estratégias fossem efetivamente implantadas e cumpridas. 

“As autoridades passaram informações contraditórias, com o presidente da República  (Jair Bolsonaro) claramente em campanha contra qualquer restrição. O auxílio financeiro emergencial começou tardiamente e se encerrou precocemente, além de ter sido distribuído de forma desorganizada, favorecendo a aglomeração de pessoas nas portas dos bancos. As empresas não receberam apoio financeiro para manter os empregos sem exigir a presença física dos empregados”, explica. 

O que não foi feito teria resolvido ou evitado o caos?

Desde o começo da pandemia, uma palavra até então estranha se tornou frequente no noticiário: lockdown. Mas, em nenhum momento, o bloqueio total - com restrições até para as pessoas saírem de casa - foi adotado por aqui. 

Essa não foi, contudo, a única estratégia que não foi trazida para cá, apesar dos exemplos de outros países. Entre as razões, há desde a possibilidade de a população não se adaptar até as dificuldades financeiras e o fim do auxílio emergencial. 

O que acontece neste fim de semana é uma espécie de lockdown ‘parcial’, já que as pessoas não estão proibidas de sair fora do horário do toque de recolher (das 20h às 5h). No entanto, como praias, parques, shoppings e lojas estarão fechados nestes dois dias, a movimentação nas cidades deve cair bastante. 

Já o bloqueio total na Bahia (e no Brasil) seria controverso para alguns especialistas - não porque não seria efetivo, mas porque acreditam que a população não se adaptaria ou não conseguiria, sem apoio financeiro do governo. Enquanto isso, um grupo grande de outros pesquisadores não tem dúvida: é a melhor forma de combater essa situação.  

“Acredito que o lockdown decretado pelo governo do estado vai reduzir a velocidade de novas infecções, aliviando a pressão sobre os serviços e os profissionais de saúde que estão exauridos”, diz o médico Luis Eugenio de Souza, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba. 

No entanto, ele diz que o ideal era prolongar para uma semana ou até mesmo 15 dias. Isso só seria possível, contudo, com o apoio da União. Para o professor, uma possibilidade é de os governadores dos estados se unam e busquem formas de obrigar o Executivo federal a tomar parte nas obrigações, através do Congresso ou até da Justiça. “Sem esse auxílio, teremos um lockdown limitado que, de todo modo, é melhor do que nenhum lockdown”, pontua.

Os exemplos de outros países vieram ao longo de toda a pandemia. Um dos mais recentes é o do Reino Unido, que determinou o bloqueio para evitar a disseminação da nova variante identificada lá. Os casos de covid-19 caíram 80%, depois de seis semanas de lockdown. 

Já Portugal, que foi um dos menos afetados na Europa na primeira onda e chegou a ser alvo de comparações com a Bahia pelo seu desempenho, viu seu sistema de saúde chegar à beira do colapso este ano. Não teve jeito: o bloqueio total foi decretado em 15 de janeiro e deve durar pelo menos até 16 de março. No país, os casos também vêm diminuindo. 

“Não temos essa cultura. O povo europeu tem, porque desde a Segunda Guerra Mundial, está acostumado a fazer. Para nós, é mais difícil manter as pessoas em casa 24 horas, sete dias. Acho improvável, por isso, vejo que seria mais efetivo melhorar o sistema de transporte, reduzir as pessoas em lojas”, pondera o infectologista Juarez Dias, professor da Bahiana. 

Daí a importância do auxílio emergencial nesse contexto, acredita ele. “As pessoas não têm como sobreviver. Há um quantitativo grande de pessoas que depende do mercado informal e não tem outra fonte. Não devia ter sido interrompido. Mas e agora que a situação está pior? As pessoas vão morrer de fome”, alerta.

O lockdown de três dias na Bahia se inspirou em ações como da Nova Zelândia, de acordo com uma postagem do secretário municipal de Saúde, Leo Prates, em seu perfil no Twitter. No último dia 14, a Nova Zelândia, considerada referência no combate à covid-19, determinou o bloqueio total de atividades durante três dias, depois da descoberta de três casos de transmissão local por coronavírus no país. Não havia nenhum registro há meses. 

Outra estratégia que não vingou por aqui foi o sequenciamento genético do coronavírus de forma massiva. Diante do avanço das novas variantes mais transmissíveis, isso nunca foi tão importante. Hoje, por exemplo, não é possível saber se essas formas do vírus já são maioria no Brasil ou qual é o alcance delas nos estados, como ressalta a epidemiologista Ethel Maciel. 

Ela acredita que esse é um dos problemas resultantes da falta de uma coordenação nacional.

“A gente deveria ter um sequenciamento grande pelo menos da maioria das pessoas infectadas. Mas a gente não ouve ninguém falar disso. É como se as variantes não existissem. Os outros países estão mais preocupados com as nossas variantes do que a gente”, critica. 

Hoje, mais da metade das amostras que chega ao Lacen testa positivo para covid-19 (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO)

O sequenciamento está diretamente ligado à testagem. A Bahia não promoveu uma testagem em massa, assim como nenhum outro estado brasileiro. Essa abordagem divide especialistas e é criticada por alguns, porque exige uma operação tão complexa que não valeria a pena. 

No entanto, foi o que fizeram países como a Eslováquia e a China, que testou toda a população de Wuhan (11 milhões de pessoas) e de Qindao (9 milhões). Na Eslováquia, as infecções foram reduzidas em 60%, mas não foi suficiente para que o país entrasse em lockdown no Natal. 

Para a subsecretária estadual da Saúde, Tereza Paim, as evidências científicas mostraram que a testagem em massa não é tão eficiente para diminuir a transmissão do vírus. 

“Você consegue monitorar, mas muitas pessoas não têm o vírus ou são assintomáticas. Para ter eficiência em um estado pobre, a gente não pode só investir nisso”, diz, defendendo ações na atenção primária, como inquéritos epidemiológicos aplicados pelos agentes comunitários de saúde.

Responsabilidades de disseminação do vírus são divididas; mas qual foi a contribuição de cada um?

Um pedido à população tem sido recorrente: se puder, fique em casa. É verdade - se as pessoas ficarem em casa, certamente a transmissão do vírus vai diminuir. Talvez até desapareça por completo, como aconteceu por meses na Nova Zelândia e até em Fernando de Noronha. Mas, por mais contraditório que possa parecer, garantir que a população fique em casa não é só uma decisão de cada um. 

“A culpa não pode ficar no nível individual, se a pessoa olha para o lado e vê que os líderes estão fazendo errado. Isso é colocar toda a culpa da falha, do fracasso das estratégias governamentais, principalmente do governo federal, no indivíduo que está indo todo dia trabalhar no ônibus lotado”, pondera a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Ufes. 

Por isso, não é de se estranhar que muitas pessoas tenham percepções diferentes do risco que estão correndo. Para gestores públicos, para a classe média e até mesmo para a imprensa, a noção do perigo é uma. Para outra parte da população, é outra. 

“Sem auxílio emergencial, querem falar para as pessoas se importarem. Elas estão preocupadas com o que vão comer. Estão aí procurando emprego, sem perspectiva, sem auxílio, sem esperança, sem nada”, analisa Ethel. 

Se a população precisa colaborar, outros entes da sociedade também. Ao governo federal, cabe garantir o auxílio emergencial e a vacinação em massa. “O Brasil tem uma relevância a nível mundial por ter uma das melhores campanhas de imunização e estamos comendo mosca desde o ano passado, com pessoas importantes fazendo chacota da vacina”, diz o infectologista Juarez Dias, da Bahiana.

Além disso, o governo federal precisa se comprometer com o pagamento das UTIs, disponibilidade de oxigênio e respiradores para os pacientes internados. Se houvesse uma coordenação nacional mais bem definida, deveria gerenciar o sequenciamento em massa do vírus. 

Com o governo estadual, fica a parte de decretar normas como lockdown, fechamentos parciais, restrições e também abertura de novos leitos e insumos. Este mês, o Supremo Tribunal Federal ainda autorizou os estados a comprar diretamente as vacinas, se o Ministério da Saúde não fizer isso. 

Já as administrações municipais são responsáveis por garantir o transporte da população sem aglomeração, assim como fiscalizar as áreas públicas. Assim como o estado, as prefeituras podem também ter decretos próprios proibindo a circulação nas praias, por exemplo. Foi o que cidades como Salvador, Camaçari e Lauro de Freitas fizeram nos últimos dias. 

“Aglomeração não é só paredão em áreas periféricas. A gente tem visto festas em áreas nobres com 30, 40, 50 pessoas. Cada ente tem seu papel bem definido. Com eles trabalhando juntos, a gente conseguiria ter uma situação bem melhor”, aponta Dias. 

Para pesquisador, o transporte público deve ser visto como um dos principais meios de disseminação do vírus (Foto: Betto Jr./Arquivo CORREIO)

Depois de tudo isso, o que ainda resta fazer? 

Mesmo com tantas estratégias, a Bahia chegou a essa semana dramática. Mas se a avaliação de alguns cientistas é de que as tentativas não foram suficientes, os próximos passos dependem do resultado deste fim de semana, com o fechamento parcial e o toque de recolher até segunda (1º).

De acordo com a subsecretária estadual da Saúde, Tereza Paim, o impacto das abordagens vai ser avaliado e os dados serão levados para o governador Rui Costa decidir o que será feito. 

Em entrevista na última quarta-feira (24), Tereza já tinha adiantado que, em alguns aspectos, as autoridades poderiam ser "repetitivas" neste momento. Isso porque, como lembrou, há três frentes principais que conseguem enfrentar o vírus, de forma cientificamente comprovada: usar máscaras, higienizar as mãos e garantir o distanciamento físico e social. 

“Por isso, temos medidas como os decretos, para que as pessoas não aglomerem, continuem usando máscaras e só saiam quando precisarem sair. Se a população consegue entender isso, a gente consegue ter um alcance enorme. Mas se a gente não alcançar (a redução de casos), precisaremos de mais medidas e a população vai ter que esperar mais para voltar ao normal”, avisa. 

Além do reforço dessa mensagem, alguns especialistas ouvidos pela reportagem defendem saídas que incluam desde uma nova estratégia para o transporte público e campanhas de comunicação que envolvam líderes da sociedade civil até que já adotado lockdown de fim de semana seja uma política mais frequente. 

Proibições 
Uma possibilidade é determinar proibições específicas com foco em grupos que se arriscam mais - no caso, os que promovem mais aglomerações. É por isso que ações como o toque de recolher podem ter resultado, já que restringe a movimentação nos bares. 

“E também fechando alguns trechos mais críticos, como o prefeito (Bruno Reis) fez com os bairros com uma infectividade maior”, aponta o médico de família Washington Luiz Abreu, professor da UniFTC e da Ufba. 

Quando ele conversou com o CORREIO, o lockdown parcial ainda não tinha sido anunciado pelo governo. No entanto, essa já era a sugestão do professor.

“No meu ponto de vista, a gente não suporta o lockdown total economicamente. Mas às vezes é necessário, por isso, poderia ser no fim de semana e à noite”. 

Além disso, ele sugere reduzir de forma obrigatória a quantidade de pessoas em certos locais, como no transporte público. O número máximo de pessoas por coletivo seria definido previamente. Porém, para que isso fosse implementado, seria necessário contar com apoio de outros segmentos - da Guarda Municipal, por exemplo. 

“O motorista não dá conta e o papel dele é conduzir as pessoas com segurança. Mas o transporte público precisa ser visto também como um veículo de disseminação do vírus. De repente, uma estratégia seria pensar em turnos diferentes, mas é um trabalho que tem que ser feito com as empresas e com a área social da prefeitura e do governo do estado”, enumera. 

Atualmente, a frota média em Salvador é de 85% e, pelos cálculos da Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob), 64% dos usuários do sistema têm pegado ônibus. Nos horários de pico, a frota chega a 100% nas estações de transbordo e algumas linhas podem ter reforço de veículos. 

Em nota, a Semob afirmou que acompanha diariamente a situação, mantendo contato com as concessionárias para garantir o reforço nas linhas com maior procura para minimizar as aglomerações. 

(Infografia: Casa Grida)

Pacto social
Neste momento, a vacina também deve ser prioridade. Nos países onde a vacinação avançou, o número de casos vem diminuindo visivelmente. E, como ressalta a epidemiologista Ethel Maciel, da Ufes, a compra de vacinas deve ser direcionada aos imunizantes que já tiveram sua eficácia e segurança comprovada. 

Mas, até lá, ela defende um grande "pacto social" - uma parceria entre os gestores públicos e setores da sociedade civil e empresas privadas para garantir a redução da circulação de pessoas. 

"Um exemplo é que as empresas privadas que podem fazer trabalho remoto voltassem a ele. A gente precisa de um esforço conjunto também com igrejas, congregações e setores que influenciam muitas pessoas para que ajudam a fazer com que todos entendam a gravidade desse momento. Precisa trazer essas pessoas para junto. Ao invés de convencer indivíduos, o governo convenceria segmentos", completa Ethel. 

Correio 24 horas

Postar um comentário

0 Comentários