Se o Brasil quiser antecipar e quem sabe até se planejar de maneira mais efetiva para os desdobramentos da pior crise sanitária dos últimos 100 anos, ficar de olho no que acontece em Manaus é um bom começo.
O colapso do sistema de saúde da cidade no início do ano, com falta de oxigênio para pacientes e a explosão do número de mortes, foi tão impactante que acabou por se tornar o estopim da CPI da Covid, que será instalada nesta terça-feira (27) no Senado e deu origem a uma denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o governador Wilson Lima (PSC).
Os senadores devem investigar a atuação do governo Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia e o repasse de verba para Estados e municípios – nesse grupo de parlamentares estão dois ex-governadores do Amazonas, Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD), com este presidindo a comissão.
Enquanto a investigação se desenrola no Congresso, a capital amazonense se prepara para encarar uma possível terceira onda da doença no próximo mês. Desde que o novo coronavírus chegou no país, em fevereiro de 2020, a cidade de 2,2 milhões de habitantes na região Norte antecipou em até três meses as tendências de contágios e mortes que se espalharam pelo Brasil.
Durante o período que começa no fim do ano e se estende até este mês, a região passa pelo chamado “inverno amazônico”, temporada propícia para a transmissão de doenças respiratórias. “As pessoas ficam normalmente mais juntas, dentro de casa e de espaços fechados”, explica o infectologista Marcus Lacerda, da Fiocruz-AM.
“Em Manaus, sempre antecedemos o resto do Brasil em relação a doenças respiratórias. A temporada de gripe aqui começa entre dezembro e janeiro e vai até abril. Nas outras partes do país, ela começa entre maio e junho”, diz Lacerda. “Manaus é um farol para o que vai acontecer no restante do país dois ou três meses antes”, completa.
Quase 390 mil mortes e mais de 14 milhões de casos de Covid-19 já foram registrados no Brasil, de acordo com dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Neste mês, o país atingiu o pico no número de mortes diárias: mais de 4 mil óbitos no período de 24 horas. A semana entre 4 e 10 de abril, a mais letal de todas, teve mais de 21 mil mortes.
Vírus acelerado
No dia 26 de fevereiro de 2020, uma Quarta-feira de Cinzas, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou que um morador de São Paulo, um homem de 61 anos que havia acabado de retornar da Itália, era o primeiro paciente a ser registrado com a doença no Brasil.
A primeira morte só seria anunciada no dia 17 de março do ano passado: um homem de 62 anos, Manoel Messias Freitas Filho, morto um dia antes, no Hospital Sancta Maggiore, também em São Paulo.
Àquela altura, em Manaus, o comércio já havia sido fechado por determinação da administração municipal, que havia decretado estado de calamidade pública. Os casos se multiplicavam. Em meados de abril de 2020, a taxa de ocupação de leitos de UTI ultrapassava 90%.O primeiro caso na cidade havia sido registrado no dia 13 de março - uma mulher que voltava da Europa. Nove dias depois, a primeira morte. Em menos de um mês, a doença se espalhou por Manaus e pelo restante do estado do Amazonas, contaminando indígenas e populações ribeirinhas.
Pico antecipado
O pico de mortes em 2020 não tardou. No dia 28 de abril, 74 óbitos foram registrados na capital amazonense. Foram necessários quase quatro meses para que o país atingisse o primeiro pico de mortes por Covid-19, no dia 20 agosto, quando 1.234 óbitos foram registrados.
A velocidade do contágio em Manaus foi tão grande que em agosto, após quatro meses de baixa nos números da pandemia na cidade, um estudo feito por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) em amostras de bancos de sangue apontou que 66% da população local já havia sido exposta ao vírus.
Em setembro, os dados foram revisados, e o percentual subiu para 70%. À época, os resultados associados à redução de casos e mortes acenderam o debate sobre a imunidade de rebanho: o ponto em que a exposição ao vírus já seria tão alta na população que ela estaria naturalmente imunizada.
O que parecia, afinal, uma boa notícia não durou muito. Menos de um mês depois da divulgação da revisão da pesquisa, o número de casos voltou a crescer, e uma segunda onda de Covid-19 se estabeleceu. Mais uma vez, o que ocorria então na capital do Amazonas antecipou o que aconteceria no resto do país.
Imunidade de rebanho questionada
"De maio a outubro, a doença desacelerou. Mas quando o nível de anticorpos na população caiu e a variante P1 se estabeleceu, as coisas pioraram de novo”, afirma Marcus Lacerda. “A imunidade durou menos de seis meses”, completa o infectologista da Fiocruz-AM.
A alta velocidade de transmissão comprovou uma regra: quanto maiores forem os níveis de infecção, maiores as possibilidades de o vírus sofrer mutações; e quanto mais mutações, maiores as chances que, a partir de uma delas, surja um vírus mais adaptado.
“Isso aconteceu em Manaus, no Reino Unido e na África do Sul. A imunidade de rebanho caiu por terra, e o resultado são milhares de mortos”, diz Lacerda. “A quantidade dessa variante na secreção respiratória dos infectados é dez vezes maior.”
Em dezembro, a situação na cidade piorou sensivelmente, e os óbitos e internações subiram com rapidez.
Colapso reconhecido
Em janeiro deste ano, o sistema de saúde na cidade cedeu. No dia 14 daquele mês, no ápice da crise de falta de insumo na cidade, o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, admitiu que a a situação poderia ser considerada um colapso. A fila de pacientes aguardando leitos era crescente, e a letalidade disparava.
O ex-ministro afirmou que a segunda onda da Covid-19 na capital do Amazonas era resultado do período chuvoso. No entanto, Pazuello criticou os governos locais. Um motivo em particular: "não ter a efetiva ação no tratamento precoce".
Os jornais “Folha de S.Paulo” e “O Globo” revelaram um ofício enviado pelo Ministério da Saúde à Prefeitura de Manaus para que fosse “difundido e adotado o tratamento precoce" contra a Covid-19. Dias depois, o subprocurador do TCU (Tribunal de Contas da União) Lucas Rocha afirmou à CNN que faria uma representação para apurar a pressão – e o caso virou alvo de investigação do tribunal em fevereiro. O ex-ministro Pazuello alegou, porém, que o tratamento não implicaria no uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença, como a cloroquina e a hidroxicloroquina.
O colapso do sistema de saúde de Manaus, a atuação e possíveis omissões do governo federal durante a pandemia estão na origem da CPI da Covid no Senado, criada depois de um requerimento do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). A investigação deve desgastar ainda mais a gestão Bolsonaro.
Para o infectologista Alexandre Naime Barbosa, chefe do setor de infectologia da Unesp de Botucatu (SP) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Manaus é, de fato, um exemplo a ser observado pelo resto do país. “Manaus e o Amazonas foram exemplos de tudo o que não se deve fazer”, diz.
Barbosa explica que o relaxamento das medidas de isolamento social associado a uma situação de alta vulnerabilidade social e à interpretação equivocada sobre a imunidade de rebanho levaram a cidade à segunda onda da doença. “Não existe correlato de imunidade para Covid. A SBI se manifestou sobre essa pesquisa. Nesse caso, 50% dos exames poderiam ser falsos positivos”, comenta Barbosa. “A imunidade de rebanho foi por água abaixo e levou Manaus junto”, completa.
Um exemplo dos problemas que a cidade enfrenta está na denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República contra o governador Wilson Lima (PSC). De acordo com a denúncia apresentada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) nesta segunda-feira (26), Lima é suspeito de organização criminosa e da prática dos crimes de dispensa indevida de licitação, fraude à licitação e peculato em meio à pandemia do novo coronavírus.
A PGR calcula que o prejuízo aos cofres públicos ultrapassa R$ 2 bilhões. Além do governador, a PGR denunciou o vice-governador Carlos Almeida (PTB) e mais 16 pessoas, entre servidores públicos e empresários. Todos são suspeitos de terem cometido crimes na compra de respiradores para pacientes contaminados com a Covid-19.
Terceira onda a caminho
Enquanto o Senado se prepara para escrutinar a atuação do governo federal durante a pandemia, Manaus e o Estado do Amazonas se preparam para uma possível terceira onda da doença para a próxima semana, em maio. Novos leitos de UTI devem ser abertos, e a estrutura hospitalar, ampliada.
“O estado do Amazonas tem sido o primeiro a ser agravado. Depois, acontece no restante do país. Assim se deu na primeira onda e nessa segunda. Nós esperamos que essa terceira não seja tão forte quanto a segunda”, afirmou o governador Wilson Lima, após conversar com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em Brasília, na quinta-feira (22).
Segundo Marcus Lacerda, da Fiocruz, os novos problemas que Manaus tem enfrentado durante a vacinação contra a Covid-19 também podem servir de alerta ao resto do país. “Manaus foi a primeira capital a chegar à fase 3 da vacinação e ela está se mostrando mais lenta e mais difícil porque as pessoas precisam comprovar as comorbidades”, afirma. “Além disso, há uma taxa considerável de recusa das pessoas. Temos vacinas em estoque em Manaus, e vacinas em estoque não protegem ninguém”, completa o infectologista.
A Secretaria Municipal de Saúde de Manaus afirma que não há relatos de resistência à vacinação e que o município tem cumprido as metas em todos os grupos atendidos, com mais de 90% de pessoas vacinadas, por segmento.
Sobre as dificuldades na fase 3, a pasta afirma que Manaus “segue como exemplo na condução da campanha de vacinação, destinando de imediato as doses de vacina recebidas e também remanejando doses para avançar nos grupos prioritários, como é o caso dos portadores de comorbidades de 18 a 59 anos, que começou a vacinar muito antes de qualquer outra capital.”
A CNN procurou o Ministério da Saúde no dia 14 de abril com oito perguntas sobre a condução do enfrentamento da pandemia em Manaus – e voltou a pedir respostas em mais quatro ocasiões. A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde enviou apenas uma reportagem de seu site, de fevereiro deste ano, sobre a instalação do Comitê de Crise na cidade e como nele foram discutidas “todas as ações executadas no estado para o enfrentamento da crise, dentre elas, as diversas operações realizadas para reorganizar o sistema de abastecimento de oxigênio, com o transporte do insumo até a capital amazonense e a instalação de usinas e miniusinas nos hospitais de Manaus e do interior”.
O texto fala também que no comitê “são definidas as ações de transferência de pacientes do interior para a capital e de Manaus e demais municípios amazonenses para outros estados brasileiros” e “as estratégias para avançar na vacinação contra a Covid-19 no Amazonas, além da logística para a compra de insumos e equipamentos médicos e a contratação de profissionais da saúde”.
Nos próximos meses, a CPI da Covid fará uma devassa do que aconteceu até agora no combate à pandemia no Brasil. O que acontecerá em um futuro próximo depende de variáveis como o avanço no ritmo da vacinação e de como o país irá se preparar. Vale a pena olhar para Manaus.
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