As ruínas do castelo ‘medieval’ de Pirajá que abrigaria um museu de cristais

O castelo de Pirajá, na Fazenda Pirajá, em 1928 (Foto: Reprodução/Acervo Miguel José Vita Neto)

 

“No Brasil, vocês podem ter o seu castelo”, prometia um panfleto pró-emigração distribuído no final do século 19 a camponeses do sul da Itália, região mais pobre daquele país, e que na época vivia um contexto ainda mais dramático, recém-saído da Guerra de Unificação (1848-1870).

 

O jovem Giuseppe Vita, de origem humilde como toda a sua família, fora um dos alvos dos insistentes agentes de emigração (havia mais de 7 mil deles), que prometiam “enriquecimento fácil e rápido”, “clima tropical e abundância (meu irmão)”, além de “riquezas minerais” por estas bandas. 

Giuseppe, ou melhor, José Vita, italiano radicado na Bahia que fundou com o irmão a Fratelli Vita (Foto: Reprodução/Acervo Jário Barreto Vita)  

A parte do “fácil e rápido”, como não é difícil supor, ficou só na promessa, mas todo o resto acabou sendo conquistado, a duras penas, por José (Giuseppe) e Francisco (Francesco) Vita, irmãos (fratelli) fundadores da lendária fábrica de refrigerantes e cristais Fratelli Vita, fundada em 1902 e só ‘desfeita’ na década de 70.

Foi o sucesso do negócio, já nos anos 1910, que permitiu o capricho da construção de um castelo, de estilo medieval, no aprazível subúrbio de Pirajá, local que foi campo da principal batalha pela Independência da Bahia. Sem querer guerra com ninguém tanto na Itália quanto no Brasil, a família mezzo baiana, mezzo italiana, além de altos funcionários, passavam os verões patinando e consumindo água tão pura como uma San Pellegrino, extraída do próprio quintal.

Foto: Reprodução/Acervo Miguel José Vita Neto

'Me arrepiei'
Se a história do castelo em Pirajá soa surreal a quem mal conhece a região - hoje empobrecida, e em boa parte favelizada -, pra mim ainda mais, já que nasci e cresci a uns 3 km dali, em Marechal Rondon. Para ajudar a recontar a história do local, encontrei um quase vizinho, que sempre teve estranhamento igual, e visitou as ruínas do lugar há alguns anos.

O bibliotecário e fotógrafo Alan Alencar, 42, morador de Campinas de Pirajá, desde sempre teve curiosidade de saber mais detalhes dessa história, que ouvia desde a infância.

“Eu morei quase a vida toda ali em Campinas, perto da Estação Pirajá, e sempre ouvia falar do tal castelo. Tenho um vizinho já adulto na época que falava da Campinas de antigamente, com chácaras, pessoas ricas, fábrica da Fratelli Vita em Pirajá, etc, mas o castelo, em particular, me instigou”, conta ele, que a princípio não teve coragem de ir conferir de perto. 

Mas em 2007, junto com um primo, e orientado por um borracheiro que morava em frente à antiga morada de bacanas, conseguiu entrar no local para acessar as ruínas.

“Surreal... Quando vi, chega me arrepiei”, recorda Alan, que fez fotos de uma parte que restou logo na entrada da antiga edificação. “O castelo, em si, não existe mais. O que existe é um pedaço de uma espécie de cúpula, e uma varanda. Essa varanda fica a poucos metros dessa estrutura oval [foto abaixo]”, diz ele, que ainda identificou o que provavelmente era a antiga pista de patinação.

 

Alan ainda tirou foto da parte interna de uma das estruturas, além das balaustradas, cobertas de mato. “Existiam dois castelos. Um era a residência propriamente dita, e um outro bem menor, que era para visitantes, para as crianças brincarem, uma espécie de ‘casa da árvore’”, explica o bibliotecário, fotógrafo e pesquisador de ocasião.

Embora ainda seja possível ver parte das ruínas passando pela Estrada Velha de Campinas - na virada para o viaduto que dá no Porto Seco, ou 300 metros antes de chegar ao Panteão do General Labatut -, a chácara hoje está totalmente cercada de placas de concreto e, segundo moradores, algumas pessoas costumam invadir o local para consumir drogas ilícitas.

Foto: Acervo Alan Alencar/Cortesia

Livro
O conhecimento de causa, como desbravador, também levou Alan Alencar – que administra o perfil Bahia Histórica, no Facebook, junto com os colegas bibliotecários Deivisson Lopes e Rita Santos – a se tornar uma espécie de consultor para um livro sobre a rica família ítalo-baiana. A obra ‘No tempo da Fratelli Vita’, do pernambucano Gustavo Arruda, foi lançada em 2017, e tem como foco a atuação dos bróderes Vita em Recife e Salvador. “Ajudei bastante indicando nomes, pessoas, locais”, comenta Alan, indicando a publicação. 

No capítulo ‘O Castelo do Pirajá’, Arruda conta que a propriedade onde o castelo foi construído foi adquirida por Giuseppe em dezembro de 1918. Era então um terreno da F. Stevenson & C., empresa inglesa representada no Brasil pelo diretor Reginald de Crecy Steel, que o adquirira apenas dois meses antes. 

“A ideia [de José Vita] era suprir sua fábrica de bebidas com o sabor distinto da água ‘pura e cristalina’ encontrada na fonte existente naquelas terras, cuja qualidade superior ele próprio comprovara em suas pesquisas prévias. A propriedade, então, tornou-se a sua Fazenda Pirajá (ou Chácara de Pirajá), popularmente conhecida como ‘Fazenda Fratelli Vita’, onde residiu por muitos anos”, delimita Arruda.

Ele explica que ao lado do seu palacete, Giuseppe construiu um solar, “que ficaria famoso em Salvador por ter o formato de um pequeno castelo medieval, com terraços, cercado por um extenso parque de mangueiras e uma pista de patinação”. 

Lembra ainda que o objetivo da “pitoresca” construção foi abrigar o Museu do Cristal da Bahia, contendo amostras da produção dos Cristais Fratelli Vita. “Infelizmente, o projeto do museu acabou abandonado, por falta de apoio oficial do governo estadual (impondo exageradas exigências, segundo alguns, por Giuseppe ser italiano)”, cita no livro.

O grande salão do palácio, que recebeu bailes suntuosos (Foto: Revista O Malho / Acervo Biblioteca Nacional)

Poderosos
Mas essa perseguição não significa, nem de longe, desprestígio aos Vita. Em março de 1928, durante a inauguração das fábricas da Fratelli Vita em Pirajá, a revista O Malho registra a longa lista de presentes ilustres no evento, incluindo o vice-presidente da República, Mello Vianna; os governadores (em transição de mandato) Góes Calmon e Vital Soares, além de deputados estaduais e federais de altíssimo gabarito, como Pedro Calmon e Theodoro Sampaio. Olha a moral!

Recorte da revista O Malho de abril de 1928 mostra presença de políticos importantes em inauguração de novas instalações da Fratelli Vita na chácara (Foto: Acervo Biblioteca Nacional) 

Como um dos sócios-fundadores do Rotary Club da Bahia, Giuseppe passou a ser ainda mais influente na vida social e cultural do estado. Era comum, aos domingos, realizar almoços e piqueniques com famílias influentes na chácara.

No arquivo do próprio Rotary, o registro de um dos filiados, em 1940, chega a mencionar o ‘motivo’ da construção do curioso castelo. “E para testemunhar a sua perene gratidão ao lugar aonde está a fonte da puríssima água de Pirajá, Vita, modestíssimo, ali manda construir um lindo castello medieval que prazenteiro e sorridente nos espreita por entre bellissimas e frondosas mangueiras como a convidar-nos a repousar”, escreve Wilhelm Overbeck, ao citar assunto mencionado na reunião dos rotarianos ocorrida no dia 23 de janeiro de 40.

O castelo 'anexo', espécie de miniatura do primeiro, feito mais como um espaço para a criançada se divertir (Foto: O Malho/Acervo Biblioteca Nacional) 

Imperatriz
O repouso eterno de Giuseppe Vita foi iniciado no próprio castelo de Pirajá, em 1953, mais de meio século depois da promessa que lhe fizeram na Itália (aquela lá do início). 

Martha Rocha, na volta do Miss Universo, visita o castelo de Pirajá e segura um vaso de cristal feito na Fratelli Vita (Imagem: Reprodução/Alexandre Robatto Filho)

No ano seguinte, o local sediou aquele que talvez tenha sido o seu momento mais badalado: voltando do concurso do Miss Universo, no qual ficou em segundo lugar, Martha Rocha visitou o castelo, conheceu os cristais, dos quais virou uma espécie de garota-propaganda, e para esse brilho não acabar hoje, vou contar essa história numa próxima oportunidade (porque merece).

Cerca de 10 anos antes da passagem da ‘Imperatriz da Beleza’ pelo castelo, a chácara foi incorporada ao capital social da Fratelli Vita S/A, com o valor estimado em Cr$ 1.068.586,60, e transformada em ações de Giuseppe. 

Mais tarde, segundo Arruda, o castelo foi vendido para a Família Paes Mendonça, que o demoliu. Em janeiro de 1972, uma faixa das terras da chácara foi desapropriada pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagens (DNER), para a duplicação da BR-324, e o palácio dos cristais se transformou em ruínas, sendo este texto uma tentativa de devolver-lhe algum brilho histórico.

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