Moradores do Complexo de Amaralina, formado pelos bairros do Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho e Vale das Pedrinhas, revelaram detalhes de uma suposta lei de segurança imposta por traficantes na região. No local, não se pode roubar para não atrair policiais e não é permitido acionar a delegacia, caso isso aconteça.
Ao G1, moradores contaram, em anonimato, como é o clima na região em que Yan e Bruno Barros foram mortos por traficantes após furtarem carne, no supermercado Atakarejo. Oito pessoas, entre funcionários do supermercado e traficantes, já foram presas por envolvimento no caso.
VÍDEO: Entenda o caso dos dois homens mortos após furtar carne em mercado de Salvador
Os moradores se surpreenderam com o alto nível de crueldade da morte dos dois homens, mas não enxergam a punição por roubar como incomum. Os corpos de Bruno e Yan foram encontrados com sinais de tortura e tiros no porta-malas de um carro. Relembre caso no vídeo acima.
A prática de chamar os traficantes quando ocorre assalto em um comércio foi relatada ao G1, mas as consequências têm níveis diferentes.
"Dentro dos bairros, apesar de ter essa lei de não furtar, há casos que não dão em nada. Até porque, acontece uma compreensão, eles deixam um aviso. Não batem, mas deixam um aviso de que vai ficar de olho, mas se fizer de novo....", contou uma moradora da região.
“Fiquei surpresa, porque geralmente existe esse ato de conversar. Dependendo do que for, eles até batem, mas nada desse nível”.
Outro morador citou a existência de uma lista e relatos na comunidade de outra possível punição: tiro na mão de quem furta objetos e estabelecimentos da região.
“Falam que eles pegam a pessoa e colocam em uma lista. O cara começa a ser vigiado e se continuar roubando, eles batem, ameaçam de morte. Já ouvi relatos de pessoas que tomaram tiro na mão para pararem de roubar também”, afirmou.
Os moradores relataram que o Complexo de Amaralina é comandado pela facção criminosa Comando da Paz, conhecido como "CP". A região tem 1,47 km² de área e compreende quatro bairros.
Nesta reportagem, você vai ver:
- Depoimentos de moradores que moram ou moraram no Complexo.
- Como é a convivência entre moradores e traficantes na região.
- A mudança da rotina que acontece em dias de operação.
- Análises de especialistas em segurança pública sobre a situação do Complexo
- Números de habitantes, área e divisão dos bairros.
- O caso do Atakarejo e as denúncias que aconteceram na região.
Convivência entre moradores e o comando do Complexo
Moradores ouvidos pelo G1 dizem que a convivência entre os traficantes e a comunidade tinha até um tom respeitoso em dias normais, mas que as coisas ficaram mais acirradas há 3 anos."Houve uma invasão de traficantes do Rio de Janeiro e, nesse processo, as coisas realmente ficaram um pouco mais estreitas, porque antes existia um respeito onde os moradores avisavam: 'olha, minha namorada está passando', 'respeita as mães de família'", disse um morador.
Eles também percebem que casos como invasão de casas durante operações policiais se tornaram mais corriqueiros.
A situação preocupa os moradores que temem pelas suas casas e famílias que podem ser feitas de reféns.
“Tem uns três anos que começaram a invadir casas e fazer reféns. Antes eu nunca tinha visto, era uma coisa pacífica, tranquilo viver aqui. Os moradores têm a liberdade de ir e vir, mas quando essas coisas começam a acontecer, a gente fica com medo”.
“Acho que é terrível, porque para os moradores, a sensação é de descontrole. Antes, o sentimento era de controle, de saber onde está, que vão respeitar e a partir daí criamos uma autonomia. Hoje em dia não, a gente vive muito no imprevisto. Uma hora está tranquilo dentro de casa, outra hora pode ter uma correria”, relatou o morador.
Policiais negociam soltura de reféns no Vale das Pedrinhas, em Salvador, em 4 de abril de 2019 — Foto: Alan Oliveira/ G1
Uma outra pessoa, que morava em um dos bairros do Complexo de Amaralina, se mudou para o interior do estado por questões pessoais e de segurança. Os relatos são semelhantes.
"Há uma lei da bandidagem, não se pode roubar nenhum estabelecimento porque atrai a polícia à localidade. Há um acordo entre tráfico e comerciantes que se forem roubados, ao invés de chamarem a polícia, chamam os bandidos para tomarem providências. Quem chama a polícia sofre retaliação".
“A gente fica com medo de acontecer alguma coisa com a gente. As pessoas estão em casa e de repente são alvos de bala perdida, tiroteio no meio da rua quando tem operações, agora até casas invadem para fazer reféns”, disse.
Em nota divulgada ao G1, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) informou que cinco unidades da Polícia Militar (40ª CIPM, três Bases Comunitárias de Segurança e Rondesp Atlântico) e uma da Polícia Civil (28ª Delegacia Territorial) desenvolvem, diariamente, ações ostensivas e de inteligência, na região.
O órgão de segurança pública também afirmou que o Estado se faz presente de forma intensa no Complexo de Amaralina, coibindo qualquer tipo de "poder paralelo".
Operação teve apoio de diversos batalhões da Polícia Militar, no bairro da Santa Cruz, em Salvador, no dia 2 de maio — Foto: Alberto Maraux/SSP-BAComo fica a comunidade em dias de operação?
Moradores relatam que virou um fato corriqueiro homens armados invadirem casas e transformarem famílias em reféns durante as operações policiais no Complexo. Os homens também solicitam a presença da imprensa no local para se entregar.
"Quando rola operação é bastante complicado, porque querendo ou não, existe esse alarme da polícia. A galera só quer saber da sua própria vida, se salvar e muitas vezes até os policiais não fazem o que deveriam, falas agressivas, armas apontadas na cara", afirmou uma das moradoras.
De acordo com moradores, cinco pessoas foram feitas reféns, no bairro da Santa Cruz, em Salvador, na operação do dia 2 de maio — Foto: Alberto Maraux/SSP-BA
Outra modificação na rotina da comunidade é a paralisação da circulação dos ônibus em alguns locais do Complexo.
Após uma operação em dezembro do ano passado, a frota só voltou a circular plenamente sete dias depois, afetando o transporte de milhares de pessoas que moram na região.
"Para quem é trabalhador, que pega o ônibus lotado, é extremamente cansativo descer e andar até em casa. Você sai de um lugar e não sabe o que está acontecendo onde mora. É terrível, mas eu até entendo que é uma forma dos rodoviários priorizarem a vida deles", afirmou a mesma moradora que prefere não ser identificada.
Após sete dias, ônibus voltam a circular pelo Complexo do Nordeste de Amaralina
Aliança de grupos nacionais
Final de linha do bairro Santa Cruz, durante uma operação policial no dia 8 de dezembro de 2020 — Foto: Victor Silveira/TV Bahia
Especialistas em segurança pública ouvidos pelo G1 comentaram as dinâmicas usadas por grupos criminosos na região do Complexo de Amaralina.
Felipe da Silva Freitas, pesquisador na área de direito e política e professor colaborador do mestrado profissional em segurança pública da UFBA, afirmou que grupos nacionais como o Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital (PCC) passaram a disputar alianças com grupos do Norte e Nordeste.
"Isso foi o que gerou, por exemplo, as chacinas que aconteceram no Rio Grande do Norte, no Amazonas e no Pará, nos presídios, entre 2017 e 2018. Existe uma reorganização desses grupos nacionais em direção ao Norte e Nordeste", contou.
O pesquisador do Laboratório de Estudo sobre Crimes e Sociedades (LASSOS) da Ufba e professor do departamento de Sociologia, Luiz Lourenço, em conversa com o G1, explicou que o Comando da Paz é a facção baiana mais antiga, criada há cerca de 10 anos, e que surgiu dentro do presídio de Salvador.
Segundo Luiz Lourenço, o grupo criminoso era conhecido inicialmente como "Comissão da Paz".
“Era uma comissão de presos que geriam, ajudavam a gerir as relações carcerárias para ter menos conflitos, para organizar melhor a relação dos internos. Então era visto muito com bons olhos pela administração prisional da época e ganhou muito espaço para atuação”, contou.
O especialista explicou que o grupo passou por transformações após começar a gerir negócios dentro da cadeia. Foi quando passou a atuar como "Comando da Paz".
"Passou a atuar com negócios, tanto comércio de bens e serviços dentro do cárcere como atuando também em áreas que eles tinham influência, onde eram oriundas as lideranças desse grupo na cidade e uma dessas áreas era o Complexo do Nordeste de Amaralina”.
Operação foi deflagrada nas primeiras horas do dia 2 de dezembro de 2020 — Foto: Giana Mattiazzi/TV Bahia
Atualmente, o Comando da Paz rivaliza com a facção Bonde do Maluco (BDM). Luiz Lourenço explicou que os estudos apontam que ambas contam com os apoios do Comando Vermelho e PCC.
"Você teria uma contraposição do Bonde do Maluco de um lado e do Comando da Paz do outro. Um atuando com o PCC e o outro tendo por trás o suporte do Comando Vermelho", explicou.
O Comando da Paz também atua na região entre a Avenida Vasco da Gama e a Federação. Também já teve atuações fortes no Bairro da Paz.
Segundo o especialista, os métodos de controle de território usados pelas principais facções do Brasil são os mesmo que ocorrem em Salvador, o que difere é a dinâmica na política de mercado.
“Não existem princípios muitos rígidos de como esses grupos funcionam. Eles funcionam como qualquer um, se precisar invadir casa de morador, vão invadir, se exige mais violência, tem mais violência, depende muito de como o mercado está, como todo mercado funciona por vários fatores".
“Não é assim que a gente vê com a Bolsa de Valores? Exatamente a mesma coisa. Qualquer empresa gerida por pessoas, a empresa vai adotando as estratégias comerciais dela com base na variação de mercado. No caso das drogas é a mesma coisa, ela vai funcionando nas variações de mercado, mas nesse caso, em variações ilegais como tortura, mortes, execuções”, concluiu.
Coronel Humberto Sturaro fala sobre facção no Complexo do Nordeste de Amaralina
Ao G1, o Coronel e ex-comandante da Polícia Militar da Bahia, Humberto Sturaro, que ficou ativo na instituição por 36 anos e comandou o policiamento na região do Nordeste de Amaralina, afirmou que os integrantes da facção são aliciados muito novos para fazer parte do grupo que comanda o local.
"Alguns jovens que fazem parte hoje do Comando da Paz, eles foram aliciados desde novos por aí. Eles não foram pessoas que vieram e foram colocadas lá. Eles já são de lá, é o filho de dona Maria, dona Tereza, dona Joana. São pessoas que os moradores viram crescer”, contou Sturaro.
“Essas pessoas são difíceis de serem denunciadas pela relação com os próprios moradores. Quando o morador procura denunciar ou não aceita essa situação, ele se torna vítima", apontou.
O coronel não acredita em um poder paralelo na região, mas confirmou a existência de um "Tribunal do Crime". Humberto Sturaro acredita que com denúncias, essas práticas e ações feitas por traficantes possam ser extintas.
"Essas informações que a população não traz para a segurança pública, isso dificulta para qualquer tipo de investigação, para identificar de onde está partindo e quem são os responsáveis por isso", disse.
O G1 entrou em contato com o Ministério Público e Defensoria Pública da Bahia para falar sobre a atuação de facções no Complexo do Nordeste de Amaralina, mas os órgãos não quiseram falar sobre o assunto.
Falta de segurança
Felipe Freitas acredita que o comando das facções só acontece por causa do acesso facilitado de armas aos grupos criminosos.
"Na prática, as autoridades sabem dessas práticas e no fundo, no fundo, essas organizações não se manteriam como elas se mantém, se elas não tivessem acesso facilitado a armas para fazer o controle”, diz Freitas.
Já Dudu Ribeiro, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, cofundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e historiador, afirma que o Estado brasileiro é o maior responsável pelo fortalecimento das organizações.
"O modelo de guerra adotado pelo Estado brasileiro é o principal responsável pelo fortalecimento das organizações, pela insegurança das populações e pela produção regular e cotidiana de morte de pessoas negras", disse o coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia.
Pessoas são feitas reféns e policial militar é baleado durante operação no bairro de Santa Cruz em 2 de maio de 2021 — Foto: Alberto Maraux/SSP-BA
O especialista lembra que segurança pública é um direito garantido pela constituição para todas as pessoas e quem deve prove-la é o Estado.
“Quando o Estado se ausenta do seu papel de prestar segurança pública, que não é necessariamente fazer operações de repressão, muitas experiências passam a organizar o território", afirmou.
"O que a gente vê é que o Estado não fortalece medidas de operações dos direitos sociais, não coloca a segurança das pessoas no centro, e só isso pode permitir o surgimento de formas alternativas de organizar o território”, opinou.
Dados do Complexo
Nordeste de Amaralina, em Salvador — Foto: Itana Alencar/G1
O Complexo do Nordeste de Amaralina é formado pelos bairros do Nordeste de Amaralina, Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas. Segundo a prefeitura de Salvador, a região é chamada de complexo porque derivaram das mesmas fazendas.
Os dados mais recentes que a Fundação Mário Leal Ferreira tem sobre a quantidade de moradores por bairro é do Censo 2010, que apontava que mais de 75 mil pessoas habitavam na região Complexo de Amaralina na época.
Há um projeto em andamento para atualizar os números de habitantes, mas ele ainda não foi divulgado. A região tem 1,47 quilômetros quadrados de área, segundo a prefeitura de Salvador.
No que se refere à organização da polícia na região, a 28ª Delegacia Territorial é a unidade responsável pelo Complexo de Amaralina.
Já a 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (40ª CIPM) é a unidade responsável pelo policiamento dos bairros da Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Chapada do Rio Vermelho. Há Bases Comunitárias de Segurança nos três bairros citados.
G1
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