Em março deste ano, o Ministério Público do Estado da Bahia criou a Promotoria de Justiça Especializada na Defesa da População LGBTQIA+, a primeira do gênero no Brasil, vinculada ao Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos. Quem está à frente é a promotora Márcia Teixeira, 29 anos de profissão, que começou a sua atuação profissional orientada para a defesa dos direitos das mulheres, mas viu a necessidade de direcionar o trabalho do MP a um outro segmento, igualmente vulnerável. “Precisamos utilizar a imprensa, as redes sociais e as mídias confiáveis para visibilizar essa cultura patriarcal, excludente, machista, sexista, homotransfóbica e conversar, dialogar com aqueles e aquelas que disseminam o ódio, a desinformação, a utilização de valores morais e religiosos equivocados”, diz ela nesta entrevista em que explica o seu novo papel.
O que motivou a criação da promotoria de justiça LGBTQIA+?
Em 2006, foi criado o Grupo de Ação Especial em Defesa das Mulheres por conta da promulgação da Lei Maria da Penha. A partir dali, comecei a estudar bastante sobre gênero, feminismo, temas que me interessam desde menina, mulher adolescente. Nessa minha jornada, fui ser vice-coordenadora e depois coordenadora da comissão Nacional de Combate à Violência Doméstica e Familiar (Copevid), que congrega promotores do Brasil inteiro, que trabalham com a Lei Maria da Penha. Com essa experiência, começo a me dar conta das questões relacionadas às mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. Já tinha tido uma experiência também em trabalhar no Hospital das Clínicas como voluntária para orientar as famílias que tinham ou eram pessoas intersexo. Toda essa minha história de vida me faz ter interesse em buscar informações sobre a população LGBTQIA+. Por ver as informações do Grupo Gay da Bahia (GGB), passei a acompanhar as pesquisas ou receber denúncias do disque 180. Tudo isso foi me aproximando e aproximando a instituição também. Porque nós discutíamos esses temas nacionalmente. A aplicação da Lei Maria da Penha nas relações homoafetivas envolvendo mulheres, sim. Envolvendo homens, não. Formávamos enunciados. Aplica-se a Lei Maria da Penha para pessoas trans? Para mulheres trans, sim. Para mulheres trans, depende do caso concreto, mas em regra, não. E fomos construindo e elaborando coletivamente enunciados envolvendo, a partir da Lei Maria da Penha, esse trabalho com a população LGBTQIA+.
O ex-BBB Gil do Vigor recebeu uma expressiva solidariedade dos jogadores do Sport depois de ser discriminado por um dirigente do clube. Também estrelou com sucesso a campanha publicitária de um banco. O jogo está virando?
Eu diria que nós estamos resistindo e avançando. Eu não diria que o jogo está virando. Diria que nós temos uma parte muito grande da sociedade que tem entendido que o respeito à população LGBT ou o respeito à diversidade nos faz culturalmente, espiritualmente e socialmente mais diversos. E por conta dessa diversidade, mais criativos, mais próximos com as dificuldades do outro. Mas isso significa uma virada de jogo? O que vem acontecendo? O que eu acredito? Nós precisamos utilizar a imprensa, as redes sociais, as mídias confiáveis para visibilizar essa cultura patriarcal, excludente, machista, sexista, homotransfóbica e conversar, dialogar com aqueles e aquelas que disseminam o ódio, a desinformação, a utilização de valores morais e religiosos equivocados, e mostrar que superamos a questão de que a homossexualidade era considerada uma doença, o homossexualismo. Deixou de ser considerada uma patologia, como deixou de ser considerada crime, de pederastia. As pessoas começam a ver que todas as formas de amar valem a pena. E o fato de ser LGBTQIA+ não significa que você tem propensão a qualquer desvio moral ou de conduta. As pessoas LGBTQIA+ estão em todos os lugares, todas as profissões, querendo simplesmente existir.
Esta semana, um casal homoafetivo foi agredido em Maraú por pessoas que queriam impedir sua presença na praia. O que a promotoria de justiça pode fazer, efetivamente, para que fatos assim não se repitam?
Em relação ao caso de Maraú ou qualquer outra violência praticada contra a população LGBTQIA+, a orientação é procurar imediatamente a delegacia e registrar ocorrência. Levar todas as informações, a autoridade policial vai instaurar o inquérito e deve ouvir a vítima, procurar saber se há testemunhas, se na localidade há câmeras que possam comprovar a agressão, se aconteceu em um local público, dentro de um restaurante, tem que haver essa investigação, se houve lesão corporal, ser enviado para fazer o exame de constatação de lesão corporal, e assim por diante. O que é possível fazer? Se eu fui vítima e não fui chamado, se a minha testemunha não foi chamada, o que posso fazer? Posso voltar à delegacia? Posso. Mas posso procurar o Ministério Público. O que eu vou falar? ‘Aconteceu esse fato comigo, o boletim de ocorrência está aqui. Eu ofereci essas provas...’. Ah, mas o Ministério Público não está com atendimento presencial na minha cidade. Existem os canais de telefone 0800, e-mail das promotorias, o Fale Conosco, que eu posso fazer todos esses encaminhamentos, através desses canais. O promotor, então, vai oficiar ao delegado, buscar saber informação, pode instaurar um procedimento de investigação criminal na sua própria promotoria para coletar informações e compartilhar com o delegado. O promotor de justiça pode ser designado para acompanhar o inquérito policial, a depender da situação que esteja ocorrendo, para colaborar com a autoridade policial. Cada caso pode gerar estratégias específicas para aquela investigação, para que o inquérito policial chegue a termo.
Como estão as estatísticas de agressão, suicídios e assassinatos motivados por LGTBfobia?
Os dados no Brasil são completamente esquizofrênicos. Você não tem uma uniformização dos dados em relação a determinadas práticas criminosas. Eu até diria que não podemos assegurar com exatidão os dados de violência no Brasil. Nós estamos melhorando, melhoramos muito sobretudo com o trabalho do fórum de violência, a publicação dos anuários, mas eles trabalham a partir de dados oficiais. Esses dados oficiais, com aspas, nós observamos no dia a dia da minha atuação que não representam a totalidade da nossa realidade. Em relação à mulher é assim, em relação ao racismo é assim, em relação à violência contra a população LGBTQIA+ também é assim. E se você não tem a visibilidade, a concretude dos dados, fica difícil criar políticas de segurança pública efetivas para proteger a população. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vão procurando através do Ministério da Saúde, das secretarias de segurança, das secretarias de saúde... Alguns, como o GGB, coletam a partir do que sai divulgado nas redes sociais, nos jornais, de informações também da militância, da localidade, mas nós temos muita dificuldade em ter esses dados de uma forma sistematizada, de uma forma correta, a partir das informações que são repassadas pelos órgãos estaduais de segurança pública, no que se refere à população LGBTQIA+. O GGB vem coletando essas informações desde 1990. Nem todos os boletins de ocorrência têm o campo gênero-orientação sexual da vítima, muitos boletins de ocorrência não são preenchidos com a totalidade das informações. Essa tentativa de melhoramento da qualidade dos dados vem sendo sinalizada nos últimos anos por pesquisadores, por instituições que fazem pesquisa nas universidades, nos fóruns, nos institutos que são criados para que possamos visibilizar com mais concretude a violência. O que não se contabiliza, o que não se visibiliza, fica parecendo que não existe. E, na verdade, é uma das questões que nós precisamos falar muito, precisamos dos dados referentes à violência contra a população LGBTQIA+.
A Justiça tem sido mais efetiva no combate à homotransfobia…
Sobre os direitos conquistados através do sistema de justiça, em especial do Supremo Tribunal Federal, considerando as omissões legislativas em relação às dificuldades de aprovação de projetos de lei que projetam e assegurem os direitos que todo o ser humano tem na comunidade LGBTQIA+, foram reconhecidos pelo STF os casamentos homoafetivos como entidade familiar e isso tem um espargimento, uma repercussão muito grande em relação à possibilidade de adoção de filhos, questões patrimoniais, questões relacionadas à herança. Houve muitos impactos no momento em que o STF reconhece o casamento homoafetivo. O uso do nome social, a alteração do registro civil, que antes era através de ação judicial de retificação de registro, hoje se faz administrativamente. Só os menores de 18 anos precisam da ação judicial. A cirurgia de redesignação, o chamado processo transexualizador, a que o Ministério da Saude permite, ainda que em tese, que ocorra pelo SUS. A questão da doação de sangue. E agora, mais recente, o reconhecimento da homotransfobia como crime. Tudo isso foi conseguido através do sistema de Justiça e dos instrumentos normativos nacionais e internacionais, muitas dessas ações recorrem a declarações de Direitos Humanos, a recomendações da Organização das Nações Unidas, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à nossa Constituição Federal para a conquista desses direitos.
Há militantes que consideram a sigla LGBT+ suficiente para contemplar toda a população que não cisgênero heterossexual. O A de LGTTQIA+ se refere aos assexuados. o aumento de letras e as novas definições não podem levar ao risco de enfraquecimento das pautas?
Eu diria que politicamente é importante as pessoas se verem representadas. Até o momento que a sociedade não precise mais disso, que a sexualidade seja vista e encarada com naturalidade. Sinceramente, não acredito no enfraquecimento do movimento. Fiz um curso recentemente porque tenho procurado estudar e me aproximar teoricamente do que vem sendo discutido, compartilhado. E ouvi do professor Leandro Colling (Ufba) que o Brasil é um dos maiores produtores de conhecimento acadêmico no que diz respeito à população LGBTQIA+. E isso é muito importante.
A Tarde
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