Quase quatro milhões de mortos no mundo em um ano e meio – mais de 500 mil só no Brasil. Nações se fecharam, se abriram, se uniram na busca por protocolos, vacinas, medicamentos, por uma saída. Mas até hoje não se pode afirmar com precisão a origem do novo coronavírus, causador da doença que varre o planeta, a Covid-19.
A possibilidade mais plausível era a de que a evolução natural teria se encarregado de permitir que um vírus que habita morcegos contaminasse humanos. A hipótese de a origem da pandemia ter sido um laboratório alimentou estapafúrdias teorias da conspiração sobre a China ter manipulado, propositalmente, o coronavírus.
Nas últimas semanas, porém, cientistas renomados e figuras que investigam o caminho do vírus até os humanos passaram a aventar um cenário em que um acidente de laboratório seja a origem da pandemia.
Em maio deste ano, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, deu 90 dias para que os serviços de inteligência do país produzam, com "esforço redobrado", um novo relatório sobre as origens do coronavírus – medida considerada “manipulação política” e “desrespeito à ciência” pela China.
O argumento americano é de que os dados atuais são insuficientes para determinar se o vírus veio da natureza ou escapou, acidentalmente, do Wuhan Institute of Virology (WIV), laboratório que trabalha com engenharia genética de diferentes coronavírus e que fica a poucos quilômetros do mercado ligado ao primeiro surto da Covid, que aconteceu no fim de 2019.
A hipótese dos morcegos
Em uma amostra de 41 dos primeiros casos confirmados, 70% dos infectados eram fregueses e vendedores do Mercado de Frutos do Mar de Huanan, ponto tradicional do comércio de carne de animais selvagens, incluindo bichos vivos. Entre os produtos à venda nas prateleiras, estavam iguarias como língua de crocodilo, escorpiões, raposas, salamandras e filhotes de lobos.
As circunstâncias lembravam as origens de duas outras epidemias: a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) de 2002, também registrada inicialmente na China; e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), com o primeiro caso na Arábia Saudita, em 2012. Ambas se originaram de vírus de morcegos que, antes de infectar humanos, passaram uma temporada por outros hospedeiros. Na Sars, civetas, animal selvagem vendido em mercados como o de Wuhan. E na Mers, camelos.
Em 11 de janeiro de 2020, data em que a Covid-19 fez a primeira vítima fatal de que se tem notícia – um frequentador assíduo do mercado –, cientistas chineses revelavam uma importante descoberta: a sequência genética do novo vírus, que ganhou o nome de Sars-CoV-2.
A análise revelou parentesco com um coronavírus de morcego chamado RaTG13, que já tinha amostras armazenadas no WIV, o laboratório de Wuhan. Os dois genomas têm semelhança de 96% – algo aproximadamente equivalente à diferença genética entre humanos e orangotangos.
“Desde então, não se encontrou na natureza nenhum vírus mais parecido”, disse à CNN o geneticista e professor de biologia evolutiva Sergio E. Matioli, do laboratório de Bioinformática do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Com base no ritmo esperado para as mutações virais, os 96% em comum sugerem que, há pelo menos dez anos, o ancestral do Sars-CoV-2 contaminou um hospedeiro intermediário e então sofreu mutações até infectar o primeiro ser humano, raciocina Matioli. Mas que intermediário seria esse? Até agora ninguém sabe. “É um crime em que não se encontrou o culpado, só se achou o parente.”
A hipótese do acidente
O elo perdido é apontado por alguns como argumento para a investigação da hipótese de o novo coronavírus ter escapado, acidentalmente de um laboratório. Entre os defensores da ideia está o jornalista e escritor especializado em ciência Nicholas Wade, com passagem em veículos de peso, como os periódicos científicos Nature e Science HIV e o jornal The New York Times.
“Cerca de 15 meses depois do início da pandemia do Sars-COV-2, os pesquisadores chineses não conseguiram encontrar a população original de morcegos ou a espécie intermediária para a qual o vírus poderia ter migrado”, afirmou ele em reportagem de repercussão internacional publicada em maio no periódico norte-americano Bulletin of the Atomic Scientist.
Mas o fato em si não prova nada. “A falta de identificação de um hospedeiro não significa que não seja zoonose”, declarou à CNN o infectologista Ricardo Diaz, chefe do laboratório de retrovirologia da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele exemplifica: “Até agora não encontramos na natureza o link para um tipo de HIV do grupo 1, mas, ainda assim, sabemos que o vírus tem origem no gorila”.
A refuta da hipótese
Pouco depois do início do surto na China, duas publicações científicas de prestígio trouxeram textos descartando a possibilidade de o vírus ter surgido no laboratório WIV. “Todos nós condenamos veementemente as teorias da conspiração que sugerem que a Covid-19 não tenha origem natural", dizia carta publicada em fevereiro de 2020 no periódico britânico “The Lancet”, assinada por 17 cientistas.
Os autores basearam o argumento no primeiro sequenciamento genético do novo coronavírus, sem maiores detalhamentos. Em tempo: segundo Wade, o esboço do comunicado é de autoria de Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, entidade que financiou pesquisas no WIV com subsídios do governo dos EUA – conflito de interesse não mencionado pelo “The Lancet”.
Daszak virou notícia pelo mundo afora também por outro motivo: o email que enviou em abril de 2020 ao conselheiro da Casa Branca para assuntos relacionados à Covid-19, o infectologista Anthony Fauci. Na mensagem, ele elogiava o médico pela “coragem” por ter refutado a hipótese da origem em laboratório.
Com base nessas e em outras mensagens, divulgadas pela mídia no começo deste mês, críticos acusaram Fauci de ter vínculos com figuras por trás da pesquisa do WIV. Fauci negou as acusações, disse ter a “mente aberta” para a possibilidade de o vírus ter escapado de um laboratório, mas afirma acreditar que a origem natural é mais provável.
Em março do ano passado, um mês após a polêmica carta publicada no “The Lancet”, outro grupo de cientistas afirmou na revista “Nature Medicine”: “Não acreditamos que qualquer tipo de cenário laboratorial seja plausível”. Os pesquisadores alegavam que os coronavírus surgem comumente na natureza. Também diziam que não havia sinais de manipulação genética na sequência do SARS-CoV2.
A reportagem de Wade contesta essa ideia, com o pressuposto de que nem todas as técnicas de engenharia genética deixam pistas. O autor também alega que, entre os quatro níveis de segurança possível, o WIV realizou grande parte dos experimentos com coronavírus no nível 2, o segundo menos rigoroso, o que aumentaria o risco de acidentes.
As investigações
Se for o mesmo o caso, por que os chineses teriam transformado o vírus no laboratório de Wuhan? “Não há evidências de que o SARS-CoV2-2 tenha sido produzido como parte de um programa de armas biológicas. Mas é possível que tenha sido gerado como parte de um esforço para produzir uma vacina eficaz contra todos os betacoronavírus”, afirmou Wade em entrevista por e-mail à CNN. “Outra possibilidade é militares chineses terem apoiado ou participado de tal programa para garantir uma vacina para suas tropas. Se for o caso, isso não seria surpreendente nem maléfico.”
Enquanto cientistas estudavam o tema – e UTIs pelo mundo afora lotavam de doentes –, a Organização Mundial da Saúde (OMS) travava uma queda de braço com a China em busca de autorização para enviar uma delegação para investigar a origem da pandemia em Wuhan. Só em janeiro de 2021, o grupo internacional de cientistas ganhou sinal verde para viajar à cidade para, em parceria com pesquisadores chineses, visitar hospitais, mercados e laboratório, sempre sob vigilância cerrada das autoridades locais.
“Como condição para a admissão de sua comissão, a OMS concordou com muitas demandas chinesas, incluindo exigências a respeito dos membros da equipe. Entre os integrantes, estavam pessoas como o Dr. Peter Daszak, que já havia declarado que considerava teoria da conspiração a hipótese de o vírus ter escapado de um laboratório”, diz Wade.
Na bagagem de volta da delegação faltaram conclusões definitivas. "Ainda não descobrimos a origem do vírus. Todas as hipóteses estão sobre a mesa", disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Ainda assim, das 120 páginas do relatório, só duas foram dedicadas à possibilidade, considerada “extremamente improvável”, de um acidente num laboratório ter iniciado a pandemia.
Embora reconheça que, em casos raros, acidentes podem ocorrer, o documento diz que “não há registros de vírus relacionados ao SARS-CoV-2 em qualquer laboratório antes de dezembro de 2019, ou genomas que em combinação poderiam fornecer um genoma SARS-CoV-2".
Segundo o relatório, a possibilidade de contágio por meio de um animal que tenha contraído o vírus de um animal de outra espécie é “provável ou muito provável”. A conclusão, porém, foi feita sem a pesquisa de registros de dados originais do laboratório, com acesso vetado pelas autoridades chinesas. A censura do material despertou críticas do próprio diretor-geral da OMS, que defendeu a realização de novos estudos.
Também expressaram insatisfação com a falta de transparência da China os Estados Unidos e outros 13 países, como Coreia do Sul, Austrália e Reino Unido. “Dado o grau da influência chinesa na OMS, as conclusões da equipe provavelmente já estavam esboçadas mesmo antes de pousarem em Pequim”, afirmou Wade.
A insistência
O coro dos descontentes aumentou em maio deste ano, quando um grupo de 18 cientistas de universidades de ponta, como as americanas Harvard, Yale, MIT e Stanford, nos Estados Unidos, publicou uma carta na revista “Science”. “As teorias de liberação acidental de um laboratório e de 'spillover' zoonótico permanecem viáveis”, diz o documento.
Uma das organizadoras da carta é Alina Chan, pesquisadora de Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Em entrevista à revista online ”Slate”, ela defende uma apuração livre de disputas diplomáticas, sejam elas pró ou contra a China. “Ainda acho que o comércio de vida selvagem é um cenário plausível [para a disseminação do vírus entre humanos], mas é essencial que tenhamos uma investigação real, confiável e sem influência política”, afirmou.
Outro responsável pela iniciativa é o ex-presidente da Sociedade de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, David Relman, professor de microbiologia e imunologia da Escola de Medicina Universidade de Stanford.
“Sabemos que no centro da cidade de Wuhan estão algumas das maiores coleções de coronavírus de morcegos do mundo e também um vigoroso programa de pesquisas envolvendo a criação de coronavírus quiméricos de morcego, realizadas com a integração de sequências genômicas de coronavírus desconhecidos a conhecidos”, afirma ele em entrevista à Universidade de Stanford. “E sabemos que acidentes de laboratórios acontecem, com bem mais freqüência do que muitas vezes admitimos”, continua.
A tese é reforçada pelo fato de três pesquisadores do WIV terem procurado atendimento hospitalar com sintomas semelhantes ao da Covid em novembro de 2019, antes do início do surto em Wuhan, segundo os serviços de inteligência dos Estados Unidos. Cientistas do laboratório também viajaram 1.500 quilômetros para coletar amostras de vírus como parte do estudo sobre a origem de pneumonia com sintomas semelhantes à Covid-19, que acometeu, em abril de 2012, seis homens encarregados de retirar fezes de morcegos de uma mina – três dos quais morreram.
Entre os nove tipos de coronavírus levados da mina para estudos no WIF estava justamente o RaTG13, aquele parente mais próximo do SARS-COV-2. “A questão é: como o vírus SARS-CoV-2 chegou do sul à região central da China, já que morcegos não voam tão longe?”, indaga Alina Chan.
Mas para o brasileiro Marioli a tese é frágil. “Ainda que o morcego não voe mais que 50 km, é possível que transmita o vírus para outro animal da espécie, que por sua vez voe 50 km, transmita para mais um e assim por diante”, afirma.
Há também argumentos ainda mais técnicos. Wade ressalta que o próprio laboratório chinês informa em documentos que trabalha com os chamados experimentos de “ganho de função”, nos quais vírus são manipulados para que tenham mais capacidade de infectar células humanas, com a justificativa de assim possibilitar estudos para combater epidemias. Na sua visão, um possível indicador de que o SARS-COV-2 seja resultado dessas experiências seria o alto grau de adaptação do vírus à espécie humana – algo esperado de vírus resultantes da engenharia genética.
Wade menciona uma peculiaridade do SARS-COV-2 em relação a outros coronavírus da mesma família: a existência do chamado sítio de clivagem da furina. A estrutura facilita a entrada do vírus nas células e resulta de uma combinação de aminoácidos não encontrada em vírus proximamente aparentados. “Essas características representam um grande desafio à ideia de origem natural para o SARS2”, diz ele, reproduzindo fala de David Baltimore, virologista e ex-presidente do Instituto de Tecnologia da Califórnia.
Mais uma vez, Matioli discorda. “Em primeiro lugar, o fato de algo ser pouco provável não significa que seja impossível. Em segundo, a chance de o sítio da clivagem surgir de forma natural é maior do que o texto de Wade sugere.”
A controvérsia
Naturalmente, nem todos estão convencidos. “A carta da Science sugere falsa equivalência entre o incidente em um laboratório e os cenários de origem natural", diz o virologista Kristian Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, um dos autores da carta da Nature que descarta a hipótese do acidente no WIV. "A hipótese de vazamento de laboratório permanece baseada na especulação”, defende.
Será possível um dia saber quem tem razão? Para isso, seria preciso encontrar um vírus geneticamente muito parecido com o Sars-CoV-2. “Quanto mais semelhante às linhagens da pandemia um vírus for, melhor candidato ele será a ter originado a pandemia, seja por meio de um vazamento de laboratório ou de uma origem natural a partir de hospedeiro silvestre, diz Matioli. A tarefa não será fácil. “A natureza politizada da questão tornará muito difícil realizar uma investigação adequada, mas isso não significa que não devemos dar nosso melhor”, afirma Relman.
CNN
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