Ainda em mandato como deputado federal, o senador Jorginho Mello (PL-SC) alugou durante 85 meses um mesmo veículo de uma locadora de carros de Santa Catarina, seu estado natal. Documentos mostram que, antes do período de locação, esse veículo pertencia a um assessor do parlamentar e outro assessor se tornou dono do carro, no final do ano passado. O parlamentar nega qualquer irregularidade nos contratos, pagos com verba pública e que somam, ao menos, R$ 290 mil.
Além das 85 notas referentes à locação do Ford Fusion, existem outras
11 que tratam da locação de outros veículos da empresa pelo
parlamentar. Ao todo, foram 96 contratos mensais de locação na Câmara e
mais sete no Senado, que somam um valor de R$320 mil.
Para chegar a esses valores, a reportagem da CNN consultou a documentação pública das despesas custeadas pela Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar e as despesas pagas pelo Senado. No entanto, apenas 52 Notas Fiscais estavam disponíveis no sistema para consulta pública on-line. O restante dos comprovantes foi obtido via pedido à Câmara via Lei de Acesso à Informação.
As 85 notas fiscais, apresentadas à Câmara dos Deputados para reembolso, discriminam um veículo Ford Fusion, ano 2006/2007. Em outras três notas,também apresentadas pelo ex-deputado, o carro descrito tem a mesma marca, modelo e ano, mas com placa similar, que apresenta apenas um dígito diferente daquela das outras 85 notas. De acordo com o Detran, esta placa diferente é de uma motocicleta. Especialistas em direito administrativo ouvidos pela CNN dizem haver indícios de irregularidades.
De 2011 a 2019, o Ford Fusion alugado por Jorginho era de propriedade da empresa Auto Locadora Campeche Tur, sediada em Florianópolis. Porém, de acordo com o Departamento de Trânsito de Santa Catarina (Detran-SC), antes desse período, o mesmo veículo pertenceu a Renato Debiasi de Oliveira, que trabalhou como secretário parlamentar de Jorginho entre 2011 e 2019 na Câmara Federal e na Assembleia Estadual de Santa Catarina entre 1999 e 2011.
Atualmente, o veículo está em nome de Maurício Ronsani dos Santos, que, desde julho de 2014, trabalha com Jorginho. Procurado, o assessor confirmou à CNN ser o atual proprietário do carro, mas não quis fornecer à reportagem um comprovante de pagamento pelo veículo. Veja ao final da reportagem, a resposta completa do senador.
Atualmente, Ronsani ocupa o cargo de auxiliar parlamentar AP-07 de Jorginho Mello no Senado, com remuneração bruta de R$ 8.996 mensais.
Em entrevista à CNN, um ex-funcionário da Câmara dos Deputados que tinha acesso aos recibos de pagamento disse - sob a condição de anonimato - que o carro, na verdade, sempre pertenceu ao senador, mas foi colocado em nome de servidores do gabinete dele para ocultar bens e receber a verba de reembolso para si.
Sobre a locadora, o ex-servidor afirma que todos os servidores dos gabinetes de Jorginho, tanto na Câmara quanto no Senado, tinham conhecimento de que se tratava de um esquema em que a empresa aparecia como proprietária do veículo apenas para emitir as notas fiscais e justificar os reembolsos.
De acordo com parágrafo 5º do Ato da Mesa n.º 199, de 29 de agosto de 2017, da Câmara dos Deputados, “não se admitirá, para fins de reembolso, a locação ou fretamento do mesmo veículo automotor por período superior a doze meses, intercalados ou não”.
Após a aprovação da lei, Jorginho apresentou mais 13 notas fiscais da Campeche Tur, mas uma delas, referente a abril de 2018, não informa a placa do veículo locado, apenas o ano e modelo - um Ford Fusion, ano 2006.
Outros três recibos, apresentados entre dezembro de 2016 e fevereiro de 2017, informam que o parlamentar locou outro Ford Fusion 2006, de placa MHM 6220. No entanto, após consulta ao registro da placa no Detran-SC, a CNN descobriu que, na verdade, diz respeito a uma motocicleta Honda CG Titan. De acordo com o Artigo 115º do Código de Trânsito Brasileiro, as placas são individualizadas para cada veículo e não podem ser reaproveitadas.
Consultada, a Câmara dos Deputados informou que o contrato assinado diz respeito ao Ford Fusion de Placa 6230 e que provavelmente houve um erro de grafia.
O serviço com a empresa Campeche também foi contratado no primeiro ano de mandato de Jorginho no Senado. O mesmo veículo foi alugado para atividades parlamentares, entre os meses de fevereiro e julho de 2019, com um valor somado total de R$ 15.480,00 para reembolso. Hoje, o senador integra a CPI da Pandemia e defende as ações do governo federal.
Para o advogado e professor de Direito Constitucional Alessandro Soares, o fato de o veículo pertencer ao servidor do parlamentar é um indício forte de que a contratação teria sido simulada pela empresa contratada, o que pode trazer complicações legais aos envolvidos.
“Muito provavelmente houve repartição de valores entre empresa e servidor, podendo ter ocorrido inclusive superfaturamento. Nesse sentido, teria havido no mínimo violação da impessoalidade e moralidade pública, podendo o servidor ser enquadrado na lei de improbidade administrativa, além da legislação penal. Ele não pode se utilizar do cargo para obter vantagem pessoal indevida. Pode ter ocorrido também partilha de valores com o próprio Senador, nesse caso, além de prática de improbidade (enriquecimento ilícito) e possível cometimento de crime, o Senador poderá sofrer processo de cassação de mandato por quebra de decoro”, explica.
De acordo com o também advogado e professor de Direito Administrativo Cecílio Pires, se as irregularidades que envolvem o parlamentar e seu servidor forem comprovadas, será configurado um ato de improbidade administrativa.
"A sistemática utilizada, se comprovada, configura desvio de verba pública em proveito próprio do senador, ofendendo, ainda, os princípios da administração pública, notadamente a legalidade e a impessoalidade", diz.
A empresa
A Campeche Tur pertence ao casal Lindomar Pedro Jacinto e Sônia Silva Jacinto. Uma das filhas dos proprietários da empresa, Daniela Silva Jacinto, é, desde 2019, gerente de sistema de apoio administrativo e financeiro da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Florianópolis.
Ela foi nomeada em função comissionada da capital catarinense em maio de 2017, à época em cargo de gerente na Secretaria de Fazenda da cidade. Assinaram a nomeação de Daniela, o prefeito Gean Marques Loureiro e o então Secretário da Casa Civil, Filipe Mello, que é filho do senador Jorginho Mello.
O prefeito de Florianópolis também possui ligação com o senador. Até 2009, o pai do prefeito, Aguinaldo José Loureiro, foi secretário parlamentar do então deputado estadual Jorginho Mello.
Outra funcionária da Prefeitura de Florianópolis que também presta serviços ao senador é Regina Esther Pereira. Desde 2012, Jorginho loca um imóvel da servidora, em Florianópolis. A propriedade serve como gabinete do Senador em seu estado e já foi locada também para o Partido Liberal, ao qual Jorginho é filiado. Regina é funcionária comissionada da prefeitura da capital catarinense e ocupa o cargo de Gerente de Comunicação Digital do Gabinete do Prefeito.
Outro lado
Em nota, o senador Jorginho Mello respondeu que:
“O veículo foi locado em acordo com os atos normativos que regram a Cota Parlamentar da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, não existindo nada de irregular – E o veículo nunca tinha pertencido ao Funcionário Mauricio Rossani. Com a vinda para o Senado Federal não havia mais necessidade da locação do Veículo que foi devolvido à Locadora. O Funcionário Mauricio Rossani quando devolveu o veículo a Locadora ficou sabendo que ela ia colocar o carro a venda, conhecendo o carro e sabendo que era conservado e bem cuidado resolveu adquirir para si o veículo, fazendo toda a negociação direto com a Locadora não existindo nenhuma relação comercial com o Gabinete. Esse veículo anteriormente nunca pertenceu ao Funcionário Mauricio. OBS: Facilmente podendo comprovar junto ao Detran e no Portal da Transparência da Câmara dos Deputados”
Em relação às notas da Autolocadora – A Câmara dos Deputados tem um setor de revisão das notas – Pode ter passado batido tanto pelo Gabinete quanto pelo Setor alguma nota digitada com a numeração da placa errada. Na hora de lançar no sistema não foi visto, o que facilmente podemos verificar para detectar esse erro.
Em relação à nomeação da Sra. Daniela Silva Jacinto não é de nossa responsabilidade quem contratou foi a Prefeitura Municipal de Florianópolis não tendo nenhuma ligação com o mandato. Como o Filipe Mello era Secretário a época assinava decretos e atos administrativos em conjunto com o Prefeito Municipal, como é de praxe nos órgãos municipais – Não tendo nenhum conhecimento com a indicada.
Em relação ao que o ex-funcionário diz a narrativa dele e totalmente mentirosa – porque o veículo veio a ser do Funcionário Mauricio Rossani, apenas depois que a Locadora Campeche colocou à venda o veículo. Esse funcionário foi demitido por insubordinação e assédio moral com a funcionária Vânia Franco."
Procurado pela reportagem, o proprietário da Campeche Tur, Lindomar Pedro Jacinto, conhecido como “Mazinho”, disse que não iria comentar o caso.
Em nota, a Câmara dos Deputados informou, após ser questionada pela reportagem, que verificou os reembolsos realizados a Jorginho Mello no período em que foi deputado e identificou que houve uma falha no sistema de controle e que, por isso, foi realizado um pagamento indevido ao parlamentar.
“Esclarecemos que, naquele momento do processamento dos reembolsos, o controle informatizado relativo ao prazo máximo de 12 meses para o ressarcimento das despesas com a locação de veículos se encontrava em fase de implantação, tendo apresentado um problema na contagem de documentos por competência, conforme informação prestada pelo setor de informática da Casa, o que acarretou o reembolso indevido relativo ao mês de setembro/2018 ao ex-deputado Jorginho Mello, conforme nota/recibo n. 1379, emitida pela empresa locadora em 30/09/2018, no valor de R$ 2.700,00”.
“Nesse sentido, o reembolso da despesa com a locação do veículo no mês de setembro/2018, por meio da CEAP, no valor de R$2.700,00, comprovado por meio da nota/recibo n. 1379, constitui-se em débito junto à Câmara dos Deputados, nos termos do Ato da Mesa n. 76/1997, art, 1º, inc. II, tendo sido inscrito no sistema de controle de débitos da Casa, SICOD, e se encontra em fase de regularização por meio de cobrança administrativa, conforme processo n. 488.566/2021.”
De acordo com comprovante enviado pela assessoria do senador, o débito já foi pago e a situação regularizada junto à Câmara dos Deputados.
Procurado, o Senado Federal enviou uma nota explicando que a atividade do Serviço de Gestão das CEAPS – SEGCPA/SAFIN refere-se à análise dos documentos fiscais que instruem os pedidos de ressarcimento, conforme §1º, art. 5º do APS 5/2014.
“O SEGCPA. portanto, não possui poder de investigação e não conhece os detalhes dos serviços prestados ao senador. A tarefa primordial é analisar os documentos fiscais para verificar se os mesmos são aptos a justificar o ressarcimento das despesas por eles representados. Cabe ressaltar que o parlamentar ao apresentar a solicitação de ressarcimento, declara a autenticidade da documentação, como também que foram gastos relacionados ao exercício da atividade parlamentar”, diz em nota.
A Prefeitura de Florianópolis informa que tanto Daniela Jacinto quanto Regina Pereira não fazem parte do atual quadro de funcionários do município e desconhece qualquer ligação de imóvel ou veículo de senadores da República.
CNN
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