Um ex-funcionário do presidente deposto do Afeganistão, Ashraf Ghani, detalhou um quadro vívido das últimas semanas do governo, incluindo como o mandatário e seus conselheiros ficaram chocados com a velocidade do avanço do Talibã sobre a capital Cabul.
Ghani estava longe de estar preparado para a chegada do grupo aos arredores de Cabul no sábado passado (14) e fugiu no domingo (15) apenas com as roupas que vestia, disse à CNN.
Nas horas finais, o oficial disse que um membro sênior do governo Ghani se reuniu em Cabul com um membro proeminente de um grupo aliado tanto do Talibã quanto da Al-Qaeda, que lhe disse sem rodeios que o governo deveria se render.
“Nos dias que antecederam a chegada do Talibã em Cabul, estivemos trabalhando em um acordo com os EUA para entregar pacificamente a um governo inclusivo e para o presidente Ghani renunciar”, disse ele. “Essas negociações estavam em andamento quando o Talibã entrou na cidade. Isso foi interpretado por nossa inteligência como avanços hostis.”
“Há mais de um ano recebíamos informações de que o presidente seria morto no caso de uma invasão”, acrescentou o funcionário.
O vice-presidente Amrullah Saleh fugiu na manhã de domingo, disse o ex-funcionário, indo para o norte, para o vale de Panjshir. Muitos outros fugiram do complexo presidencial “pouco depois, quando houve tiros fora do palácio. As pessoas na cidade entraram em pânico e muitos seguranças abandonaram seus postos”.
“Naquele ponto, nosso objetivo era salvar a cidade e seus cidadãos da luta nas ruas. Isso foi mantido e o acordo que começamos a negociar (que) continua hoje nas mãos de (ex-chefe executivo afegão) Abdullah Abdullah e (ex-presidente Hamid) Karzai.”
Ghani saiu às pressas, disse o ex-funcionário. “Ele foi para Termez, no Uzbequistão, onde passou uma noite, e de lá para os Emirados Árabes Unidos. Não havia dinheiro com ele. Ele literalmente só tinha as roupas que vestia.”
O presidente, que foi criticado por deixar os afegãos entregues a um destino incerto, negou que deixou Cabul com milhões de dólares em dinheiro. Ele explicou em uma mensagem no Facebook que deixou o país para evitar derramamento de sangue e que fugiu sem nem mesmo trocar de sapato.
Colapso rápido
O ex-oficial descreveu como o pensamento dentro do palácio foi mudando, enquanto o Talibã varria as capitais provinciais e Kandahar, a segunda maior cidade do Afeganistão.
“Nosso pensamento era que Kandahar estava reforçada. Forças adicionais também foram enviadas de Khost, então acreditávamos que elas seriam capazes de manter Kandahar como fizeram em Helmand (província)”, disse ele.
Assim que Kandahar caiu na sexta-feira (13) passada, “era óbvio que Cabul não aguentava mais, mas pensamos que tínhamos mais tempo do que tínhamos até o Talibã chegar a Cabul. Aconteceu muito mais rápido”, disse o ex-funcionário.
“Antes da queda de Kandahar, uma estratégia de consolidação de forças foi traçada com a ajuda dos EUA. No entanto, a velocidade do colapso, que ninguém previu, nunca permitiu que este processo fosse concluído”, afirmou.
Outra razão para a velocidade do colapso foi o anúncio da retirada das forças americanas restantes, feito pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em abril e iniciado em maio.
“Nós subestimamos o efeito que a retirada dos EUA teria sobre o moral de nossas tropas, bem como os desafios logísticos em mantê-las abastecidas”, disse ele. “Achamos, e os americanos também previram, que tínhamos pelo menos até meados de setembro para fazer um acordo político e consolidar nossas forças para criar um impasse militar.”
Além disso, disse ele, “politicamente, subestimamos o número de acordos localizados e individuais que foram feitos antecipadamente entre o Talibã e líderes políticos, comandantes e empresários”.
“Essas foram falhas de liderança política, não de nossos bravos soldados – eles lutaram bravamente até o fim”, disse ele. “Não há um único bode expiatório para culpar e este nunca foi um processo totalmente controlado pelos afegãos.”
O ex-funcionário disse que “nos últimos dias, quando ficou claro que não poderíamos manter Cabul por muito tempo, o foco principal foi um acordo negociado que manteria Cabul e seus cidadãos seguros”.
“A preocupação era a guerra dentro de uma cidade de seis milhões de habitantes. Sabíamos que, se Ghani partisse, as armas ficariam silenciosas.”
Quando questionado sobre qual foi a atitude dos EUA em relação a Ghani durante este período, o ex-funcionário disse: “Eles não lhe disseram para sair, mas havia um plano para acelerar o processo de negociação, com uma equipe com poderes para ir a Doha selar o acordo. Em seguida, ele entregaria o poder a um governo de transição inclusivo.”
“A equipe deveria partir na segunda-feira, Cabul caiu no domingo. Estávamos trabalhando nisso às pressas com os americanos até o último minuto.”
“Sim, havia e há preocupações sobre o domínio do Talibã, é por isso que o governo estava tão focado em uma transferência pacífica de poder para um governo de transição inclusivo”, disse o ex-funcionário.
Conversas com o Talibã e o conselheiro de Ghani
Ele também revelou que houve contatos entre um conselheiro sênior de Ghani e o Talibã.
“O presidente Ghani não teve reuniões diretas com o Talibã, mas o tio de Sirajuddin Haqqani, Khalil Haqqani, falou com o conselheiro de segurança nacional afegão Hamdullah Mohib no domingo à tarde, dizendo que queriam uma transferência pacífica de poder e que o governo deveria emitir um declaração de rendição.”
Khalil Haqqani é tio do vice-líder talibã Sirajuddin Haqqani e Anas Haqqani, que está envolvido nos esforços para formar um novo governo. Tanto Khalil Haqqani quanto Sirajuddin Haqqani são procurados pelas autoridades dos EUA por suas alegadas atividades terroristas como parte da rede Haqqani.
O ex-funcionário também falou sobre os esforços em andamento em Cabul nos últimos dias para formar um novo governo. “Há esforços em Cabul para a formação de um governo inclusivo, liderado agora pelo Dr. Abdullah e o ex-presidente Karzai. Iniciamos esses esforços na semana passada e apoiamos esses esforços e esperamos que o Talibã não tente criar um governo monopolista.”
“Se o grupo quiser ter legitimidade internacional, terá que aceitar trabalhar com outros e formar um governo representativo inclusivo”, acrescentou o ex-funcionário. “Ainda há esperança de que eles agirão com sabedoria. Até agora suas ações foram calculadas, o que é um bom sinal. Eles parecem estar trabalhando em estreita colaboração com os líderes políticos.”
“Um governo inclusivo e representativo dará aos afegãos uma trégua de mais violência e criará um país em paz consigo mesmo e com seus vizinhos”, disse ele.
CNN
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