Um
homem negro, de 56 anos, diz ter sido obrigado a tirar a própria roupa
para provar que não havia furtado itens de um supermercado no interior
de São Paulo.O caso foi registrado no início da noite de sexta-feira (6)
em uma loja do Assaí Atacadista.
Luiz Carlos da Silva, segundo seu advogado, estava fazendo uma pesquisa
de preços de diferentes itens para, no dia seguinte, retornar com a
mulher e efetivar a compra.
No momento em que deixava o supermercado, foi acusado por um segurança
da unidade de ter furtado produtos das gôndolas. Cercado por uma equipe
do estabelecimento, Silva foi obrigado a se despir -ele tirou a blusa de
frio, uma camiseta e a calça que usava, ficando apenas de cueca diante
de outros clientes.
O Assaí Atacadista, em nota, afirmou: "A empresa repudia qualquer ato
que infrinja a legislação vigente e os direitos humanos. Considera o
respeito como uma premissa fundamental para a boa convivência entre
todos e todas".
Disse ainda que se solidariza com o cliente, que abriu investigação interna e demitiu o funcionário responsável pela abordagem.
Várias pessoas filmaram parte da situação. Os vídeos a que a Folha teve
acesso mostram Silva chorando e muito abalado, sentado no chão do
supermercado com os seguranças ao seu redor. Em todo o momento, a vítima
suplicava por Deus.
As imagens disponíveis, porém, não flagraram a vítima tirando a roupa.
Uma cliente que presenciou o fato questionou os seguranças. "Por que
pararam ele?", perguntou ela. O segurança respondeu: "Abordagem normal."
A cliente retrucou, na sequência: "Porque ele é preto, né? Precisa
arrancar a roupa?". O mesmo segurança disse: "Preto quem tá dizendo é
você."
Outro cliente defendeu Silva: "Ele não roubou nada e não mexeu com nada.
Tem que ser mais humilde. Vocês acabaram de falar que ele tava com a
pochete [sob a blusa], mas ele não tinha nada".
"Esses caras ficam andando atrás das pessoas à toa", afirmou a
testemunha. Em todo o momento, os clientes diziam que era preciso chamar
a polícia.
Diego Souza, advogado da vítima, também estava no supermercado, mas do
lado de fora, no momento em que a confusão se instaurou. Souza contou à
Folha de S.Paulo que os seguranças barraram a entrada de novos clientes
quando Silva entrou em desespero.
"Ele ficou tão abalado que não conseguiu me explicar naquele momento o
que havia acontecido. Uma pessoa que presenciou tudo o levou para casa
após ele provar que não carregava nenhum item escondido do
supermercado", disse Souza. "O que mais chamou a atenção foi a presença
do gerente, que poderia ter agido de uma outra forma."
O advogado da vítima estima que ao menos três seguranças participaram da
abordagem, mas só as imagens gravadas pelo próprio supermercado e que
vão integrar o inquérito da Polícia Civil confirmarão a suspeita.
Luiz Carlos da Silva só conseguiu registrar o boletim de ocorrência no sábado (7), um dia depois do fato, no 1º DP de Limeira.
O advogado da vítima afirmou que, no decorrer das investigações, vai
solicitar à polícia apuração para saber se a abordagem contra Silva foi
motivada pelo fato de ele ser uma pessoa negra.
A Secretaria de Segurança Pública disse, por nota, que a natureza da
ocorrência foi tipificada "com as informações passadas no momento do
registro, podendo ser alterada no decorrer das investigações, sem
prejuízo das apurações".
A pasta da Segurança afirmou que equipes policiais estão em diligência
para obter imagens, bem como identificar testemunhas e demais
envolvidos.
O Assaí Atacadista possui 187 lojas em 22 estados e no Distrito Federal.
Diz ter pouco mais 50 mil colaboradores, responsáveis por atender ao
menos 30 milhões de clientes que passam por mês em suas lojas.
"A companhia recebeu com indignação as imagens dos vídeos e se
solidariza totalmente com o cliente", diz nota do Assaí. "Como decisão
imediata, ainda no final de semana, foi aberto um processo interno de
apuração, realizado o afastamento do empregado responsável pela
abordagem e, hoje [segunda-feira, 9], concluído seu desligamento."
O Assaí Atacadista também disse que combate a violência, a intolerância e
a discriminação, sejam elas de qualquer natureza, por meio de ações de
conscientização, treinamento, compromissos públicos e manuais internos
com orientação para os colaboradores.
"A companhia reitera que não tolera abordagens que fazem qualquer juízo
de valor em relação à classe social, orientação sexual, gênero ou
qualquer outra característica".
O Assaí Atacadista também disse que entrou em contato com a família de
Silva, tão logo soube do ocorrido, se desculpando e se colocando à
disposição de qualquer necessidade que ele tenha.
Silva é ajudante geral de uma indústria de metalmecânica em
Iracemápolis, cidade vizinha de Limeira. Antes de ser acusado de furto,
havia sofrido um outro abalo recente: a perda precoce do filho de 35
anos, morto por complicações de uma pneumonia.
O ajudante geral é membro de um terreiro de umbanda e vem recebendo
apoio psicológico de uma colega, que também frequenta o espaço
religioso.
O caso de Silva se soma a uma prática entre seguranças de supermercados no Brasil que, à revelia da lei, criaram um modo próprio de punir pessoas suspeitas de praticar furtos nas unidades.
Os suspeitos são levados aos "quartinhos da tortura", onde são espancados, levam choques e, nos casos mais graves, acabam mortos pelo elevado grau de violência empregado nas sessões de espancamento.
Em muitos dos casos, o fator racial é o componente que chancela quem é tratado como suspeito ao adentrar uma loja supermercadista.
Diferentes reportagens da Folha já mapearam essa violência acobertada. Especialistas dizem que são poucos os registros que acabam vindo à tona por causa do perfil das vítimas -a maioria não tem escolaridade, por exemplo.
Um desses casos chocou o país. João Alberto Silveira
Freitas, 40, foi espancado e morto na véspera do dia da Consciência
Negra, em 2020, por dois seguranças de uma unidade do Carrefour, em
Porto Alegre. Homem negro, ele morreu sob as vistas de testemunhas e
teve seu assassinato filmado.
O Carrefour indenizou a mulher de Beto Freitas e criou um plano
antirracismo, no valor de R$ 115 milhões, para evitar ser demandado
judicialmente pelo caso.
B.News
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