Milícia definia como PM deveria patrulhar as ruas nos bairros

Francisco Costa, aliado de Ecko: diretrizes sobre patrulhas Francisco Costa, aliado de Ecko: diretrizes sobre patrulhas Foto: Reprodução
Rafael Soares
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Passava de meio-dia de 1º de março de 2021, uma segunda-feira, quando o tenente Matheus Henrique de França avisou, pelo WhatsApp: “Vou hoje lá mais tarde”. Do outro lado da linha estava Francisco Anderson Costa, o Garça, gerente da maior milícia do Rio. Havia uma semana que o oficial — que trabalhava no 27º BPM, em Santa Cruz, na Zona Oeste, onde funciona o QG da milícia — e o paramilitar, responsável por coordenar a cobrança de taxas e as ações armadas do grupo, tentavam marcar um encontro.

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Garça, no entanto, não conseguiria comparecer, e, por isso, pediu a França que fizesse contato com um de seus subordinados, Luiz Bastos Junior, o PQDzinho. “Pego com eles as caixas e aquela meta, né?”, perguntou o tenente — segundo o Ministério Público do Rio, “caixas” eram frascos de anabolizante que o miliciano fornecia ao PM, e “meta” era propina paga pela milícia. “Sim”, confirmou o paramilitar.

Depois de combinar a entrega com o PM, Garça orientou PQDzinho, também via WhatsApp, sobre o encontro. Quando o comparsa avisou que já estava de saída, o chefe deu uma última recomendação: “Pede pra ele ajudar a gente. Pedir às viaturas pra andar com giro ligado em Manguariba” — o miliciano se referia ao uso do equipamento luminoso sobre os carros da polícia numa das regiões dominadas pelo grupo em Santa Cruz. Pouco depois, Garça replicou o mesmo aviso ao tenente França: “Preciso muito da tua ajuda. Um giro(flex) ligado inibe muita coisa”, escreveu. “Certeza. A ideia é prevenir delito mesmo”, respondeu o policial.

As mensagens, extraídas pela Polícia Civil e pelo MP do celular de Garça e obtidas pelo EXTRA, revelam como a maior milícia do Rio exerce influência sobre o policiamento dos bairros que domina na Zona Oeste: as conversas indicam que, além de orientarem ações de patrulhamento, os paramilitares são escoltados por policiais do batalhão local e determinam a retirada de agentes de determinados pontos e até a realização de blitzes.

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Em outro diálogo encontrado no aparelho, o miliciano — à época homem de confiança de Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da milícia morto em junho de 2021 — pede a mais um oficial do 27º BPM informações sobre o policiamento no bairro. Na noite de 21 de fevereiro do ano passado, Garça perguntou ao capitão Pedro Augusto Nunes Barbosa, por áudio, quem era o oficial que estava na supervisão do efetivo do batalhão naquele turno.

Barbosa prontamente respondeu, mencionando o nome de um outro capitão. Garça, então, questionou se uma equipe de policiais que estava baseada em determinado ponto podia “sair da entrada de Manguariba”, localidade acessada pela Avenida Brasil. O capitão explicou que aquele era um “PB” — ponto-base, no jargão policial, que é um local onde uma equipe deve ficar parada ao longo de um período de tempo —, mas tranquilizou o paramilitar: o policiamento só funcionaria até as 22h, depois os policiais iriam embora.

Camaradagem

Cinco dias depois, o policial e o miliciano voltaram a se falar e trocaram gentilezas. “Precisar de algo, é só falar”, escreveu Garça. “Valeu, meu camarada. Só tua consideração já é suficiente. Mas o que precisar pode acionar, valeu?”, replicou o capitão. Em outra ocasião, o miliciano conta ao oficial que pediu a um policial que mandasse uma mensagem para o “comandante do batalhão”: “Está fazendo um bom trabalho”. O comandante não foi identificado. Na época dos diálogos, o paramilitar estava foragido, com três mandados de prisão pendentes.

Na agenda de seu celular, Garça mantinha contatos de oficiais e praças do 27º BPM e também de policiais penais. O aparelho foi apreendido em abril do ano passado, quando agentes da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) foram tentar capturar o miliciano em sua casa, em Santa Cruz. Na ocasião, ele conseguiu fugir, mas deixou para trás o celular.

Com base nas mensagens, a Justiça decretou, em maio passado, as prisões de 11 pessoas por envolvimento com a milícia — entre eles, dois paramilitares, três PMs e seis policiais penais que mantinham contato com Garça. Desde então, o capitão Barbosa e o tenente França estão presos.

Já Garça está desaparecido: em junho de 2021, um parente do miliciano procurou a Draco para dizer que, depois da operação policial que culminou na apreensão do celular, Garça parou de entrar em contato com a família. O setor de inteligência da especializada recebeu informes de que Ecko, o chefe da milícia, teria executado seu comparsa porque suspeitava que ele teria vazado informações do grupo paramilitar. O crime teria acontecido pouco antes de Ecko ser morto numa operação policial. O corpo de Garça, no entanto, jamais foi encontrado.

As conversas do celular do miliciano mostram que o grupo paramilitar escolhia os locais de Santa Cruz onde a PM faria blitzes. Em 10 de fevereiro, Garça e seu subordinado PQDzinho conversavam sobre os valores obtidos pela milícia a partir da extorsão de moradores e comerciantes quando o gerente do grupo disse que já tinha planos para a destinação do dinheiro no mês seguinte: “Quero tá (sic) com pelo menos R$ 5 mil fora meu pagamento. Além de pagar o GAT (Grupamento de Ações Táticas, uma equipe operacional do batalhão), vou dar uma bonificação para fazer blitz em pontos estratégicos”, escreveu Garça.

Minutos depois, ele explicou que daria preferência, na hora de fazer o pagamento, à “ala do Oliveira” — que, segundo a investigação, é o sargento Leonardo Corrêa de Oliveira, também lotado no 27º BPM à época e, hoje, preso por conta das mensagens. Numa foto encontrada no aparelho com anotações da contabilidade da milícia, a expressão “Agrado GAT” aparece ao lado do valor “R$ 75”.

Em uma série de mensagens enviadas a PQDzinho — e posteriormente encaminhadas a Garça pelo subordinado —, o sargento Oliveira deixa “evidente a intenção de atuar lado a lado à milícia para a promoção de ‘segurança’”, conforme descreve a denúncia do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) encaminhada à Justiça. Num dos diálogos, em 22 de fevereiro de 2021, PQDzinho pediu para o sargento avisar sempre que estiver de serviço, porque seu chefe precisava de uma “escoltazinha” com frequência.

O PM respondeu: “Faço um contato aí com certeza, pra saber se tá precisando de algum apoio. ‘Tamo’ junto meu amigo”. Três dias depois, após Garça elogiar uma ocorrência da equipe de Oliveira, o PM agradeceu: “O que precisar, é só acionar que a equipe vai dar um suporte. A nossa é de somar, a nossa é de ajudar, se precisar, a gente cai pra dentro”.

Ajuda para expandir

Nos diálogos com os PMs, Garça também menciona os planos de expansão da milícia para o Recreio dos Bandeirantes. Ao capitão Pedro Augusto Barbosa, ele afirmou que no bairro estavam “tentando organizar ao máximo, pro bem do cidadão de bem”. Já ao tenente Matheus França, Garça chegou a pedir ajuda na empreitada: “Cara, não se esquece de me falar o que o morador do Recreio não está gostando que a gente possa mudar. Dentro dos nossos limites, é claro”. França respondeu de forma positiva: “Vou procurar saber sim”.

Em nota, a Secretaria estadual de Polícia Militar destacou que a Corregedoria da corporação participou da operação que resultou na prisão de três policiais suspeitos. Os agentes respondem a procedimentos administrativos internos que poderão resultar na exclusão deles. Informou ainda que denúncias contra policiais podem ser feitas pelo telefone (21) 2725-9098, pelo e-mail denuncia@cintpm.rj.gov.br ou ainda pelo WhatsApp (21) 97598-4593

EXTRA O GLOGO

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