Reportagem de A TARDE denunciou uso do tronco em cadeias públicas

Ações dos movimentos negros  combatem o  racismo e denunciam a violência
Ações dos movimentos negros combatem o racismo e denunciam a violência -

No final do século XIX, em um ano, o Brasil passou por duas mudanças cruciais: o fim da escravidão em 1888 e a Proclamação da República em 1889. Em tese, a nova forma de governo era mais um símbolo da preparação do país para entrar no mundo moderno onde não cabia, por exemplo, a manutenção de resquícios relacionados à exploração da mão-de-obra escrava, um processo extremamente violento e que ia de encontro aos chamados valores republicanos.   Mas entre a tese e a prática há uma grande distância, como mostrou A TARDE em sua edição de 12 de junho de 1914. A reportagem contou que prisioneiros e adversários de uma autoridade local em Camamu, no sul da Bahia, eram castigados no tronco.  

“A horas da capital, em Camamu, o ex subdelegado do 3º districto tinha também um tronco de ferro, onde trancafiava pelo pescoço ou pelas mãos, seus adversários ou desaffectos pessoaes. É o que nos diz em carta um leitor d ´A TARDE”. (A TARDE 12/6/1914, capa). 

O texto está acompanhado de uma imagem do artefato utilizado para o aprisionamento no tronco. No estilo de redação da época, o episódio mais recente, ocorrido em Camamu, está no final do texto. Naquele período para chegar até a notícia mais atualizada, o repórter, geralmente, contava uma história que funcionava como uma introdução. No jornalismo contemporâneo esse método ficou conhecido como “nariz de cera” por dificultar a chegada ao fato mais importante. No caso do texto de 1914, o nariz de cera trouxe a informação de que o uso dos métodos de castigo do tempo da escravidão não foi uma ocorrência isolada em Camamu.  

Ainda como governador da Bahia, José Marcelino de Sousa (1848- 1917) visitou Campo Largo, hoje o município de Cotegipe, no extremo oeste da Bahia.  O prédio onde funcionava a cadeia e a intendência, que é equivalente às prefeituras de hoje, foi adaptado para a festa de recepção ao governador. 

“Uma das enxovias servia de câmara para s. ex. e o “guichet” por onde entra a “boia” para os presos foi mascarado com uma folha de papel almaço com estes dizeres: ´Aposentos do sr. governador´”. (A TARDE, 12/6/1914, capa). 

A recepção, de acordo com o relato da reportagem, incluiu celebração com foguetes e discursos. Em seguida foi organizada a visita ao interior do local improvisado para a festa. Ao entrar no local, José Marcelino ficou chocado com uma das peças expostas: um tronco para castigos.  

“S. ex. ao vê-lo encheu-se de horror e indignação, bradando: - Para que é isso? Esse instrumento é incompatível com a República. É uma tradição do regimen de oppressão nas senzalas. E o intendente prometteu a sua ex. dar sumiço no tronco”. (A TARDE, 12/6/1914, capa). 

José Marcelino, que foi promotor público e juiz municipal, participou da campanha abolicionista. Ao abandonar a magistratura para entrar na política, tornou-se senador constituinte pela Bahia e foi governador de 1904 a 1908. Na época da publicação da reportagem por A TARDE estava no cargo de senador federal.     

Imagem ilustrativa da imagem Reportagem de A TARDE denunciou uso do tronco em cadeias públicas
 

Racismo institucional

“A notícia de A TARDE é curta, mas repleta de informações que revelam a persistência de referências materiais da escravidão 26 anos após a abolição e 25 anos após o início da República. Também percebemos a combinação de poder público e estrutura repressiva no prédio em que funcionava tanto a intendência quanto a cadeia e, por fim, como se procedeu diante da indignação do governador com a descoberta: fazer desaparecer os instrumentos incômodos, como se isso apagasse o problema”, destaca Samuel Vida, ogã de Xangô do Terreiro do Cobre e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição que sedia o Programa Direitos e Relações Raciais que coordena. 

Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), com uma pesquisa que investiga a participação de organizações da população negra em movimentos constitucionalistas, Samuel Vida avalia que os casos citados na reportagem são amostras de como a persistência do racismo atinge as bases das relações sociais no Brasil. “A negação dos efeitos do racismo, sobretudo nessa crença de que ele pode deixar de existir apenas se houver silêncio ou apagamento de suas marcas, como uma peça de castigos do tempo da escravidão, é extremamente prejudicial”, diz Samuel Vida. 

Ela aponta que esse tipo de violência não se esgota apenas na opressão de pessoas negras. Há pistas no texto de A TARDE sobre isso. É o trecho onde está a informação de que, em Camamu, o tronco servia também para castigar adversários políticos do subdelegado. 

“Quem estava no posto de adversários da autoridade policial? É a primeira década do século XX, ou seja, dificilmente pessoas negras estariam em uma posição política para ameaçar o subdelegado. A naturalização de algo tão violento como o racismo pode evoluir para outras formas de agressão que chegam também a pessoas não negras”, analisa Samuel Vida. 

Outro destaque feito pelo professor, ainda com base na reportagem de A TARDE, são os cuidados que foram adotados para que o local da recepção ao governador perdesse a marca de cadeias, como o disfarce da brecha que era utilizada para a passagem das refeições. Com todas essas precauções esqueceram de disfarçar o tronco. 

“Isso a meu ver expressa o quanto para parte considerável daquela elite era natural a existência de uma peça de castigos herdada do período escravocrata”, acrescenta o professor. Em sua avaliação, o racismo continua a ter força no Brasil devido à negação de variados segmentos da sociedade brasileira em debater seriamente os motivos da sua persistência e as consequências relacionadas. 

“Tem duas referências que eu considero importantes nesse debate. Um é Alceu Amoroso Lima quando ele diz que o passado não é aquilo que passou, mas aquele que fica do que passou. Isso ilustra como este país ainda possui essa herança terrível da escravidão e o racismo como um de seus desdobramentos. A outra referência é Jacob Gorender com seu livro Brasil em Preto e Branco. Embora eu discorde de algumas de suas posições em relação ao marxismo, nesse livro especificamente concordo quando ele afirma que o Brasil tem singularidades e que muitas delas são oriundas de um modo de produção escravista”, completa Samuel Vida. 

Se em 1914 foi chocante para a reportagem de A TARDE constatar a persistência da violência baseada na herança da escravidão, em 2022 ainda é necessário enfrentar o desconhecimento sobre questões básicas relacionadas ao racismo. Embora a academia, segmentos de mídias e outras instituições tenham avançado no debate e busca de soluções para combater o racismo e várias das suas formas de operar, como o institucional, parte significativa da sociedade brasileira segue em uma postura de negação e ódio a quem o expõe. O caminho a ser percorrido ainda é, infelizmente, longo e complexo.     

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

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