O mistério de Lorena Fox, mulher trans assassinada no Oeste da Bahia

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Encontrada morta sete dias depois de desaparecida, Lorena Fox, 27 anos, só foi reconhecida pelo salto alto largado junto ao corpo dela, em uma área de capinagem de Luís Eduardo Magalhães. Simples e brutal assim: um corpo identificado por um sapato. Os únicos elementos sobre o crime são: mulher transgênero vista pela última vez com dois homens. Sem respostas, a irmã dela e o ex-cunhado investigam o que aconteceu.
 
Os mistérios ao redor do intervalo entre o sumiço e o assassinato de Lorena reprisam a história de crimes sem solução na cidade, a sexta cidade mais rica da Bahia. Desde 2014, seis crimes letais contra a população LGBTQIA+ foram registrados no município. Deles, metade ainda sequer virou ação penal - um deles, o assassinato de uma mulher trans em maio de 2021 foi remetido pela Polícia Civil (PC) ao Ministério Público da Bahia (MP) sem estar concluído. 

Lorena vivia em uma casa de prostituição dividida entre oito mulheres trans e travestis na cidade, onde moram 108 mil pessoas. A 2,5 mil quilômetros de distância, no Rio Grande do Sul, Thaynara Sabbath, 30, recebeu uma mensagem que falava sobre o desaparecimento da irmã, enviado por uma colega dela. 

"Minha irmã morava lá há anos, a pessoa morre de forma tão brutal e ninguém se comove?”.

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A notícia chegou à Delegacia, mas ninguém encontrou Lorena, moradora da cidade há dez anos. Às 15h do dia 1º de março, um operador de máquina roçadeira encontrou o corpo de Lorena.

Sapato encontrado ao lado do corpo de Lorena (Foto: Acervo Pessoal/Sigi Valares)

Na certidão de óbito, a causa da morte é citada como “traumatismo e fratura do crânio”. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 131 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil em 2022 – 7 na Bahia e 52% com idade entre 18 e 29 anos. A organização afirma, baseada no projeto norte-americano Trans Murder Monitoring, que vivemos no país onde mais pessoas trans são mortas violentamente, seguido pelo México. 
 
Quando soube da morte da irmã, Thaynara teve medo: das circunstâncias da morte nunca serem esclarecidas e dos culpados continuarem livres. Contra isso, como não podia deixar os dois filhos sozinhos, pediu ajuda do ex-marido, que saiu de São Paulo rumo a Luís Eduardo Magalhães.
 
A investigação paralela e o contexto de violência
Duas semanas antes do sumiço de Lorena, uma notícia correu entre as garotas de programa: uma delas, mulher trans, teve as costas atingidas por um tiro, às 4h do dia 9 de fevereiro. Sobreviveu porque a costela protegeu os pulmões.

O atentado contra a mulher, a quem chamaremos de Nina, não foi reportado à polícia pelas equipes de saúde, que tinham obrigação legal de fazê-lo.

“Já estive à beira da morte várias vezes lá. Deus já me livrou várias vezes. É uma cidade violenta, eles [clientes homens] saem com a gente, todo mudo gosta de trans, da madrugada, e depois querem bater”, conta ela, que só lembra de correr ao ver a proximidade de dois homens e ser atingida, próximo à antiga rodoviária.

Ao receber alta da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Lorena quem a ajudou na mudança de casa. Ainda se recuperava ao ser informada do desaparecimento da amiga, no dia 23 de fevereiro: ela deixou o terminal de transportes onde Nina foi baleada e entrou no carro de dois homens. 

Luís Eduardo Magalhães vista de cima (Foto: Agusto Isensee/Divulgação) 

Passados três dias do sumiço, o ex-cunhado de Lorena, Sérgio da Silva Filho, desembarcou na cidade para ajudar, informalmente, nas buscas. Foi quando descobriu o contexto de exploração, violência e dívidas que envolviam o cotidiano de Lorena. Por lá, também conversou com colegas da vítima.

“O que acontece ali onde ela mora é muita exploração sexual”, afirma o gerente de um restaurante na capital paulista.

A prostituição não é ilegal, mas quem cobra porcentagem do trabalho das prostitutas pode responder por exploração sexual e ser preso por até cinco anos.  
 
Na delegacia, após a descoberta do corpo de Lorena, Sérgio ouviu que os únicos pertences da ex-cunhada eram o Registro Civil e um cachorro, Jhon - agora ele está na casa de Thaynara.

“Lorena só tem uma roupa do corpo. Nem celular ela tinha, em 10 anos? Eu e a cafetina dela chegamos a discutir, mas ficou assim. Não sei se é porque ela é trans, ou o quê, mas nada é explicado”, conta Sérgio. 

Ainda não há suspeita de autoria ou motivação, afirma a Polícia Civil. O MP da Bahia aguarda o inquérito policial para adotar as providências cabíveis. 
 
A morte de Lorena intensificou o medo entre mulheres trans e travestis que se prostituem na cidade. Motivada pelo temor de ataques futuros, Nina voltou para casa na última semana. “Estou levando desse lugar, nesse corpo, só cicatriz”.
 
Quem vai chorar

Ao saber da morte de Lorena, a defensora pública Letícia Peçanha recebeu o convite de uma ativista local para que se reunissem na sede da Defensoria em Luís Eduardo, aberta em janeiro deste ano. "Ela me trouxe vários casos. Mas o de Lorena será o primeiro de acompanhamento direto", explica.

Diante da incidência dos crimes, ela deve propor uma campanha educativa, que envolva o Judiciário, Segurança Pública e Poder Municipal para romper o ciclo de violências tão extremas, em geral precedidas de infrações de outros direitos. A Prefeitura não atendeu aos questionamentos da reportagem.

"O que percebemos é que quando chegamos a esse nível de infração de direitos, há fatores diversos de vulnerabilidade, as questões raciais, de gênero, de classe. Quando essas coisas acontecem, o estado já falhou com as vítimas antes", acredita a defensora.

Com Lorena, aconteceu assim: em 1996, ela nasceu em uma casa de classe média de Alvorada do Norte, em Goiás, rodeada por montes e atravessada pelo rio Corrente. No dia 6 de março de 2013, ela e a irmã, Thaynara, dormiram adolescentes e despertaram adultas.

Lorena e Thaynara, bebês em Alvorada (Foto: Acervo Pessoal/Thaynara Sabbath)

A mãe delas, Juliete, foi assassinada pelo então marido, em regime semiaberto na Unidade Prisional Regional de Simolândia Goiás. Toda vida é marcada por um acontecimento que orienta o futuro e distorce o passado. Para Lorena, aos 14, a morte da mãe, professora, foi esse marco. 

A irmã mais velha tomou as rédeas da família reconfigurada e as duas partiram para Goiânia, onde alugaram uma kitnet bancada pela pensão da mãe – interrompida quando elas completaram a maioridade.

"Chega a noite eu tenho que me dopar. A minha família, meu laço meu próximo do mundo, era ela. Além dos meus filhos", lamenta Thaynara, na semana seguinte à perda da irmã, envolta em ligações e mensagens a conhecidos no oeste baiano e ex-colegas da irmã. 

No registro civil de Lorena, o nome do pai era “não identificado”. Lorena tinha Thaynara e vice-versa. Ao sair da escola, Lorena não vislumbrou possibilidade de trabalho –  40% das pessoas trans enfrentam essa realidade, calcula a consultoria Mais Diversidade. Por isso, ela assentiu à possibilidade de se prostituir em Luís Eduardo Magalhães, descoberta ainda em Goiânia.
 
Embarcou aos 17, com duas amigas trans. As três teriam como destino a mais jovem cidade do oeste baiano. No futuro, as amigas de Lorena iriam embora da cidade, expulsas pelas agressões diárias.
 

A cidade para onde elas vão 
Cidades como Luís Eduardo Magalhães mostram sua verdadeira face à noite. Mulheres transexuais e travestis que se prostituem ficam entre os arredores de um antigo terminal de ônibus e pontos distribuídos pelas rodovias, enquanto as mulheres cis ocupam casas de prostituição disfarçadas de baladas. 

Prostitutas trans se espalham pela cidade (Foto: Reprodução/"Vou Rifar Meu Coração")

A escala de valores ideológicos conservadores é desmontada nesse percurso do sexo pago. Pelo resultado das últimas eleições presidenciais, os moradores da cidade estão mais alinhados com pautas conservadoras e padrões de masculinidade mais “rígidos”.

“Todos nos procuram. A maioria casados. Pessoas que tem grana. Até com pastores”, conta Lu, nome fictício de uma garota de programa trans.

Há cinco anos, ela sai de uma cidade no centro oeste brasileiro para trabalhar por temporadas em LEM.

"Gosto de interior, porque chegou e sou novidade, e gosto de ir para LEM porque tem muito homem, mas a rua ficou mais perigosa para a gente", explica.

Quando diz "perigosa", não fala só em transfobia: já foi assaltada três vezes e viu brigas sangrentas entre prostitutas. Na terça-feira de Carnaval, uma colega de trabalho e casa agrediu Lorena. "As bichas já fizeram o maior escândalo, mas eu fico na minha", diz Lu. 

Até o fechamento da reportagem, a PC não respondeu sobre estatísticas de violência contra transexuais e travestis na cidade.

Em Luís Eduardo, a prostituição de trans e travestis é capitaneada pela cafetina à qual Lorena pagava para trabalhar (até R$ 80 por noite). Quem se rebela vive sob ameaça. Quem se subordina a ela mergulha em dívidas. 
 
A cafetina vende roupas e coage as prostitutas a comprarem. É um método para que elas contraíam dívidas. Lorena Fox devia à cafetina. Comprava muitos vestidos, dizem ex-colegas. Também por isso não conseguia ir embora.

Como Luís Eduardo virou destino de prostitutas trans

A fama de LEM como lucrativo à prostituição corre longe. Com trânsito diário de carros e caminhões com trabalhadores, é uma zona propícia para o ramo. Agente da Polícia Rodoviária Federal que atuou na região por cinco anos, João Gabriel Dadalt explica o porquê:

 “Essas regiões possuem uma grande população masculina flutuante: aquele homem que não mora na região e está numa empreitada e isso se liga aos níveis de prostituição. Um homem que faz empreitada longe da família gera demanda de prostituição.”

As ações da PRF estão voltadas para a exploração sexual infanto juvenil, a única ação voltada para prostitutas adultas era o diálogo. “Mostrar que nosso trabalho não é prejudicar o serviço, mas elas estão à margem, principalmente mulheres trans, em carreira solo e longe dos olhares estatais”.
 
Essa zona de prostituição cresceu na guinada do que era um distrito: até os anos 2000, Luís Eduardo era Mimoso do Oeste, pertencente a Barreiras. Hoje possui shopping e condomínios de luxo.

Da esquerda para direita, Thaynara e Lorena (Foto: Acervo Pessoal/Thaynara Sabbath)

Thaynara detestava a cidade, que considerava “hostil” a quem desafiava os padrões. Mudou-se com o filho para lá quatro meses após a chegada dela. “Tinha medo do que podia acontecer”. O trabalho da irmã afastou Thaynara fisicamente. “Acabou ficando difícil. Mas ela era tudo que eu tinha”.
 
Um dia depois de ter sido encontrada morta, Lorena foi enterrada, ao lado da lápide da mãe, em Alvorada do Norte. Devido ao estado do corpo dela, o velório não aconteceu. Quem chora por Lorena também ressente o mistério.

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