Naufrágio do Galeão Sacramento, que vitimou centenas de pessoas e foi uma das motivações para a construção do Farol da Barra, acaba de completar 355 anos
Exatos 310 anos separam a música ‘Farol da Barra’, uma das mais tranquilinhas dos Novos Baianos, de “um dos mais lastimosos espetáculos que viram os mares da Bahia”, com a coincidência de o cenário e o horário descritos serem os mesmos. “Quando o sol se põe, vem o farol / Iluminar as águas da Bahia” é o verso que abre, na voz de Baby, a famosa canção lançada em 1978. Mas o tal farol, usado ali como símbolo de calmaria, só foi construído porque em 1668 sua inexistência foi fator determinante para uma tragédia que matou centenas, espalhando corpos pela praia da Barra, incluindo o daquele que chegava para assumir o Governo da Bahia, em 5 de maio de 1668.
Semana passada fez 355 anos que o galeão Santíssimo Sacramento, transportando estanho, cobre e talvez 800 passageiros, chegava de Portugal junto com a noite. Ao adentrar a baía, sob chuva e ventania, tinha passado pelo Rio Vermelho, algo desorientado, mas não conseguiu vencer o banco de Santo Antônio, submerso a apenas 5 metros da superfície, bem em frente à praia da Barra. Era por volta das 7 da noite quando o navio bateu, já se aproximando do destino final, e a água começou a entrar, deixando-o à deriva.
Sob a orientação do general João Correia da Silva, que chegava para assumir o Governo da Bahia por indicação e reconhecimento da Coroa Portuguesa, o galeão começou a disparar tiros de canhão como espécies de sinalizadores, aflitos pedidos de socorro.
“Prevenido destes sinais, o governador e capitão-geral Alexandre de Sousa Freire, entendendo ser evidente perigo de alguma das naus da armada (...), enviou logo com a pressa que permitia a confusão da noite, em quantas embarcações ligeiras se acharam na Ribeira, práticos da barra e pessoas inteligentes da navegação, com os instrumentos (...), gente e todo o necessário com que se pratica acudir em semelhantes perigos”, narra o escritor Sebastião da Rocha Pita no livro ‘História da América Portuguesa’, lançado em 1730.
“Era grande a distância do porto ao lugar do naufrágio, e não lhes foi possível chegarem senão ao romper do dia, que saiu a mostrar o estrago”, continua um trecho da obra, narrando o cenário de areia arrasada com os detalhes mais comezinhos.
Em pedaços
Ficou tudo feio de manhã cedinho.
Tudo, tudo estava virado, como descreve Rocha Pita: “Acharam feita em
pedaços a nau, e grande número de corpos, uns ainda vivos vagando pelos
mares, outros jazendo já mortos nas areias; estragos que testemunharam
os que o governador Alexandre de Sousa enviara para remediar o perigo”.
Dos que se salvaram – a estimativa é que apenas 70! –, parte foi com a ajuda dos pescadores locais. “E só salvaram as vidas algumas pessoas, às quais pôs em salvo a sua fortuna e a diligência dos pescadores daquelas praias, que com grande piedade e zelo cristão, por estarem mais próximos, as recolheram nas suas jangadas e canoas (pobres embarcações ligeiras da sua pescaria), e algumas poucas que sobre tábuas piedosamente despedaçadas no seu remédio se puseram em terra”, narra o escritor em outro trecho.
Titanic da vida real
E se a história de Jack
orientando Rose a segurar firme numa das tábuas soltas do Titanic
naufragado é pura ficção, na Bahia, a fábula tem as credenciais do real.
“Entre estas (histórias de salvação) se faz digna de memória a notícia de um menino de 8 anos, que depois de estar seguro no porto não queria largar das mãos uma pequena tábua em que se salvara, dizendo que quando seu pai o lançara sobre ela ao mar, lhe dissera que se largasse havia logo de morrer”, diz o relato do livro.
E, surpreende-se o autor, “tal era a inocência do menino, e tão materialmente entendeu a advertência do pai, que não largava a tábua depois de conseguido o fim para que dera-lhe.” “Do sucesso que teve o pai não há notícia”, assim como não se sabe onde foi parar o corpo de Jack Dawson já faz 84 anos.
Vem o farol
O capitão de Mar e Guerra Reuben
Bello Costa, administrador do Museu Náutico da Bahia – que fica dentro
do Forte de Santo Antônio, onde está o Farol da Barra –, confirma que a
construção deste equipamento foi motivada pela tragédia do galeão, ali
do lado. “Sim. A navegação comercial na Baía de Todos os Santos, no séc.
XVII, estava intensa devido a inserção do Brasil na rota da Carreira
das Índias, e os navegantes se ressentiam da falta de um sinal visual
que os auxiliasse a adentrar a Baía, principalmente no período noturno”,
nos conta. Vale destacar que o banco (de areia) de Santo Antônio ainda
oferece risco para embarcações de grande porte.
“A instalação do Farol possibilitou que o navegante tivesse mais segurança, principalmente os que vem do norte e leste, para contornar o banco de areia e evitar que ocorra um encalhe ou avarias nos cascos dos navios, como aconteceu com o Galeão Sacramento”, comenta o comandante Reuben, destacando que no Farol da Barra, ao contrário do que diz a música, o encontro não é pouco: foram quase 150 mil visitantes no ano passado. E desses tantos, quem prestou atenção, notou diversos itens resgatados do nosso ‘Titanic pré-Titanic’, incluindo os canhões que estão bem ao lado do farol tardio.
(Foto: Marinha do Brasil/Divulgação)
A taxa de acesso ao forte/museu custa R$ 15, mas tem meia-entrada para estudantes, professores e idosos. Além disso, moradores de Salvador pagam só R$ 10. Se tiver dúvidas, é preci-necessário acessar www.museunauticodabahia.org.br. E se a vontade é bem saber mais sobre o tríplice mistério do stop do galeão, dá pra aprofundar a investigação indo lá no fundo mesmo, nos restos imortais da embarcação. A escola e operadora de mergulho Galeão Sacramento (galeaosacramento.com.br ou @galeaosacramento), que fica no Porto da Barra, promove passeios até os destroços, com todo o respeito e informação, desvendando os mistérios do planeta. Acabou chorare.
Correio
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