Sobre o Marco Temporal: mais uma bizarrice anti-indígena

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Nas últimas semanas, as redes sociais foram inundadas por manifestações sobre o Marco Temporal. Mas você sabe o que é isso? O marco temporal estabelece que só serão consideradas terras indígenas aquelas efetivamente ocupadas ou utilizadas pelos indígenas brasileiros na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Ou seja: se a tese do marco temporal for acolhida, só será possível falar sobre demarcação das terras indígenas quando estiver comprovado que aquela área estava na posse da comunidade indígena no dia 5 de outubro de 1988.

O marco temporal não tem previsão legal e contraria a Constituição Federal. O único critério temporal que consta na Constituição em relação às terras indígenas é a determinação de que o Estado brasileiro deveria demarcar todas as terras no prazo de 5 anos a partir da Constituição. Agora, 35 anos depois e sem que as demarcações tenham sido realizadas, temos essa tentativa de inviabilização das demarcações.

A quase repentina visibilidade e urgência desse tema não é obra do acaso.

No último dia 28 de abril, durante o Acampamento Terra Livre realizado em Brasília, o presidente Lula assinou 6 decretos de homologação de terras indígenas (TI).

A resposta a essa conquista foi dura: além do reconhecimento da urgência na votação do Projeto de Lei (PL) 490 de 2007, foi colocada em votação a Medida Provisória nº 1.154, de 2023 que criou o Ministério dos Povos Indígenas e transferiu para ele a atribuição de reconhecimento e demarcação das terras indígenas. O resultado dessas votações foi um recado: ao aprovar de modo assustadoramente rápido um projeto de lei de 2007 e retirar do primeiro Ministério criado para tratar exclusivamente sobre os direitos dos povos indígenas a competência para tratar sobre o nosso direito mais violado - o direito à demarcação dos territórios -, a Câmara dos Deputados reafirmou a sua postura racista, anti-indígena e descomprometida com a preservação do meio ambiente.

O absurdo da tese do marco temporal é gritante e pode ser explicado sob várias perspectivas (constitucional, legal, histórica), mas conjugando todas é possível enxergar com clareza o quanto a garantia de direitos dos povos indígenas ainda incomoda uma pequena parcela da população que fez seu patrimônio em cima da usurpação do nosso território - seja pela apropriação indevida das nossas terras, seja pela exploração do garimpo ilegal.

A questão também está sendo discutida no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que até agora conta com o voto de 3 ministros: 2 contrários ao marco temporal (Min. Edson Fachin e Min. Alexandre de Moraes) e 1 a favor (Min. Kássio Nunes Marques).

O argumento de que seria necessário estabelecer um prazo (marco temporal) para evitar que ocorram pedidos de demarcações de todo território nacional, inclusive de locais onde já há cidades construídas, camufla de forma quase infantil o desejo de legitimar propriedades obtidas de forma ilícita e inviabilizar o nosso direito ao território ancestral. Convenhamos: se em 523 anos a segurança nacional nunca esteve em risco pelas nossas reivindicações demarcartórias, não seria agora que isso iria acontecer.

Se nós considerarmos que a invenção do Brasil teve início em 1500 e até os livros didáticos mais convencionais (leia-se: racistas) contam que já havia indígenas aqui, fica fácil compreender que antes de ser Brasil esse território era aldeia e que o vínculo do nosso povo com a terra não decorre de um contrato ou qualquer instrumento previsto no direito civil: esse vínculo é ancestral e essa tentativa de limitação temporal (05 de outubro de 1988), além de não ter fundamento, é uma tentativa de genocídio legislado. Afinal, o nosso território é sagrado e tentar tirar de nós esse direito, há tantos anos negado, é tentar aniquilar a nossa cultura. Mas isso não é novidade: já são 523 anos de tentativa; são também 523 anos de resistência.

Se por um lado, a demora para a realização do direito corresponde a uma violação sistemática; por outro, a busca pela sua efetivação fortalece a nossa resistência e nos impulsiona a ocupar cada vez mais espaços que nos foram historicamente negados ou utilizados como meio de opressão, agora para fortalecer a luta do nosso Povo e fazer nossa voz ser ouvida nos processos decisórios. Foi assim nas escolas, nas universidades, na Câmara dos Deputados, na FUNAI, no Ministério, na Defensoria e será assim em cada vez mais espaços porque além de a nossa história não começar em 1988 nunca mais haverá um Brasil sem nós. A história deste país está sendo reescrita para que a nossa voz seja ouvida.

Por Correio 24 horas

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