Despedida do padre que gostava de carnaval deixa igreja lotada


Uma despedida emocionante para um padre irreverente. Quando o frei Ronaldo Marques Magalhães assumiu o comando da igreja de Santo Antônio Além do Carmo, no Centro Histórico de Salvador, em 2002, os fiéis ficaram assustados. A paróquia tradicionalmente foi liderada por padres ortodoxos, mas o estilo despojado do novo pároco, que vestia camiseta regata, tomava cerveja e gostava de festa, introduziu um novo conceito sobre o sacerdócio.

O começo da vida religiosa de padre Ronaldo foi diferente da maioria dos religiosos. Na infância, ele não tinha inclinações para a batina e, na adolescência, frequentava à igreja casualmente, como revelou ao CORREIO, no ano passado. O chamado para a vida religiosa veio apenas aos 23 anos, quando deixou o pequeno povoado de Pesqueira, no agreste de Pernambuco, e seguiu para um convento dominicano, no Rio de Janeiro.

Depois, estudou Filosofia em São Paulo (SP) e Teologia em Belo Horizonte (MG). A primeira vez que desembarcou na Bahia foi em 2001, para liderar projetos sociais em Cruz das Almas, no Recôncavo, onde atuou como vigário. Em março de 2002, ele foi transferido para a igreja de Santo Antônio Além do Carmo, onde permaneceu por 21 anos, até a morte, neste domingo (9).

O corpo do padre foi velado dentro do templo, em quatro missas, e a celebração das 11h foi dedicada aos familiares e amigos. O caixão foi colocado aos pés do altar, ao lado de uma coroa de flores enviada pelo empresário e diretor de turismo de Salvador, Gegê Magalhães. Em alguns momentos, foi preciso organizar uma fila para a despedida. Muitos fiéis vestiram a camisa da trezena de Santo Antônio, dobraram os joelhos nos bancos em oração e ficaram emocionados.

O professor Paulo Silva, 56 anos, era um dos amigos mais próximos de frei Ronaldo e disse que, quando o padre assumiu o comando da igreja, ficou surpreso com a irreverência do religioso, mas também satisfeito. Ele frequenta o templo desde os 10 anos e conta que, quando criança, sofreu episódios de racismo por parte de padres mais convencionais.

“A vinda dele melhorou muito a paróquia, com os salões de festa que fizemos, arrumou o Colégio Divino Mestre, o telhado, fazia doação de cestas básicas para a comunidade e era uma pessoa muito justa e muita honesta. Ele cantava, tinha uma ligação muito forte com a cultura e com o respeito à diversidade”, disse.

Religiosos de matriz africana também estiveram na missa e fizeram orações. “Ele não fazia acepção de ninguém, principalmente com as pessoas mais simples e excluídas da sociedade. Ele dava apoio a todo mundo. Ele quebrava o tradicionalismo e isso chocava algumas pessoas, mas ele dizia que Jesus também chocou os hipócritas e que a gente precisava fazer o mesmo para termos uma sociedade mais justa”, disse.

Batismo

Frei Ronaldo era é terceiro de três filhos e morava em Salvador com uma das irmãs. O cunhado dele, o técnico de enfermagem Manoel Nascimento, 57 anos, conhecia o religioso há 35 anos e lembra de um episódio que aconteceu em Pesqueira, na cidade natal da família, em Pernambuco.

“Havia uma crença, na época, de que crianças filhas de pais separados não podiam ser batizadas. Um dia, quando foi visitar a gente, ele pediu ao bispo autorização para fazer o batismo. As famílias ficaram alegres e ele batizou uns 20 meninos. Isso causou um ciúme com os padres locais, mas deixou a população feliz”, conta.

O frei Ronaldo ficava bravo se falassem mal da cidade natal dele, como era comum no período eleitoral por conta das picuinhas políticas, e não dava muita atenção as críticas por parte da ala mais conservadora da igreja.

Um ano depois de assumir a paróquia de Santo Antônio Além do Carmo, ele fez uma feijoada para a comunidade. O objetivo era relembrar os ensinamentos da avó, dona Tereza Marques, com quem aprendeu a fazer o feijão preto que perfumava a casa inteira e que mais tarde ganhou fama em Salvador.

Padre Ronaldo ao lado de Márcio Victor: alegria e respeito andavam juntos em prol das obras da igreja. Crédito: ARQUIVO/CORREIO

O evento virou uma tradição sempre no terceiro domingo de setembro, no pátio da Paróquia, e a festa era animada por grupos de samba e cantores famosos, como Márcio Victor, Mariene de Castro e Ju Moraes. Uma das edições reuniu 3,5 mil participantes, entre católicos, candomblecistas, evangélicos, espíritas e ateus.

Em 2022, o ingresso custou R$ 30. O objetivo era angariar recursos para os projetos desenvolvidos pela igreja, através do Centro Comunitário e Cultural Santo Antônio. O frei também foi responsável pela criação e educação de um sobrinho neto, hoje um adolescente.

Em nota, a arquidiocese de Salvador lamentou a morte do pároco, lembrou da trajetória dele dentro da Igreja e disse que ele também exercia a função de vigário forâneo da Forania 1 e era membro do Conselho Presbiteral da Arquidiocese Primacial do Brasil.

“Com a fé em Cristo Ressuscitado, pedimos a todos as orações pelo descanso eterno de padre Ronaldo e pelos seus familiares”, diz a nota.

Frei Ronaldo tinha 62 anos e estava internado há 12 dias por conta de uma cirurgia cardíaca. Ele era diabético e teve complicações após o procedimento. A morte foi confirmada por volta das 17h30, no último domingo(09). O corpo será sepultado nesta terça-feira (11), às 16h, em Pesqueira, após uma missa de corpo presente na principal igreja do município.

Frei criou bloco de carnaval em Pernambuco

A doméstica Maria de Lurdes Marques e o funcionário público Francisco Magalhães sempre gostaram de reunir os amigos para confraternizar. O frei Ronaldo acreditava que foi desse convívio com os pais que surgiu o gosto pelas festas.

Quando assumiu a igreja de Santo Antônio, ele reformou os salões que ficam nos fundos do templo – antes, tomados pela vegetação - e abriu o espaço para eventos. Algumas edições de carnaval tiveram até cinco festas, com atrações como Filhos de Jorge, Alexandre Peixe, Jau e É o Tchan. O valor arrecadado era o que ajudava a manter parte dos projetos sociais.

Ele gostava tanto da festa que criou um bloco de carnaval em Pesqueira, chamado ‘Amigos do Frei’, e desfilava todos os anos no agreste de Pernambuco. A bancária aposentada Sônia Bittencourt, 74, participou de alguns desses carnavais.

“Ele era uma pessoa muito alegre e era como se ele fosse da minha família. Ele celebrou a missa de um mês de falecimento de minha mãe. Nunca vou esquecer. Moro em Brotas, mas sempre frequentei essa igreja. Minha irmã casou aqui e minha filha e minha neta foram batizadas aqui. Sou muito devota a Santo Antônio”, afirmou.

O velório teve a participação de públicos de diversas idades. O irmão mais velho do padre tem 75 anos e está acamado, por isso, não pode comparecer a missa. As outras duas irmãs ficaram emocionadas e abraçadas durante a cerimônia. 

Por Correio 24 Horas

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