Conhecer o passado é fundamental para compreender os fatos que se
desenrolam no presente. Dá uma perspectiva mais ampla dos acontecimentos
que estão ocorrendo agora e que têm tudo para mudar a história. Nesta
entrevista exclusiva ao jornal A TARDE, o professor de Relações
Internacionais, Murilo Jacques, volta quase dois mil anos para entender
as origens da guerra sem fim entre palestinos e judeus.
Mas não fica só no passado. Na conversa, Murilo analisa o papel dos diversos atores mundiais no desenrolar do conflito e arrisca os motivos que levaram o Hamas a cometer os atos atrozes de terrorismo que causaram a morte de mais de mil israelenses.
“O importante dessa análise é fugir do maniqueísmo. É tentar olhar de fora, porque senão a gente vai começar a discutir tudo como Ba-Vi”, alerta o professor, que falou também sobre a ofensiva de Israel em Gaza, o papel dos EUA, Rússia e Irã no conflito, dentre outros assuntos. Confira tudo na entrevista que segue.
Começo a entrevista pela origem do conflito entre Israel e Palestina que remonta há quase dois mil anos. Quais são as raízes desta guerra sem fim?
Esse conflito se estende ao longo de centenas de anos. É muito complexo a gente identificar uma origem específica. Porque essa origem vem dos reinos bíblicos, de Abraão e Sara. Mas não vamos voltar tanto. A partir dos anos 60 depois de Cristo (d.C), quando houve uma revolta dos judeus contra os romanos, que foi totalmente reprimida, essa foi a primeira grande derrota para a comunidade judaica na região. Esses levantes continuaram e, em 130 d.C, o imperador Adriano também reprimiu uma nova revolta. E aí tem um fato interessante: Adriano, por vingança, nomeou a região de Palestina, que vem da Filistina, dos filisteus que eram rivais declarados dos judeus. Esse fato começa a gerar essa dualidade entre judeus e palestinos. Avançando mais, a gente pode considerar o período das Cruzadas também como muito relevante e que já vem de uma condução europeia interferindo na região. Isso muda com os otomanos, a partir de 1453. Na verdade, eles já dominavam boa parte da região, mas o ápice foi com a conquista de Constantinopla. A partir daí, houve um período de estabilidade. Por outro lado, houve êxodos muito grandes de judeus para a Europa. Mas, durante o período otomano, houve uma centralização de poder que produziu um período mais pacífico.
Que vai até a Primeira Guerra Mundial?
Esse período vai até a Primeira Guerra Mundial. Mas a gente pode voltar um pouco, porque há um fato muito importante no final do século 19, que é o movimento sionista, muito influenciado pelo nacionalismo europeu, que está aflorando naquele momento. Os estados nacionais, o sentimento nacional. O sionismo vem de carona dentro da necessidade de se resgatar esse debate de um estado judeu. Isso é levado ao longo do início do século 20, até termos o fim da primeira guerra, com os otomanos muito enfraquecidos. E, após o fim da guerra, o império otomano rompe definitivamente.
Com o rompimento do domínio otomano, os conflitos voltam à tona?
As potências europeias começam a interferir com o argumento de organizar a região, porque de fato havia um vácuo de poder. O Reino Unido foi o país que tomou a frente dessa condução. Dentro desse processo, você tem antigos e novos atores. Você tem os judeus inflados pelo movimento sionista, os palestinos que estão na região e agora os britânicos. Começaram aí muitos confrontos de guerrilhas porque os dois lados também questionavam o domínio britânico. Por outro lado, os britânicos buscavam controlar aquela região. O império britânico naquele momento, ainda era a grande potência mundial. Isso vai sendo conduzido ao longo do período entre guerras.
Aí vem a Segunda Guerra Mundial, o holocausto, o extermínio de judeus pelos nazistas...
O horror do holocausto gerou essa comoção por conta do que os judeus sofreram nas mãos da Alemanha nazista, que conduziu um processo industrial de extermínio dessa população. A derrota da Alemanha gerou mais um movimento em prol da criação de um Estado judeu. Porque quando se fala em Estado a gente pensa numa perspectiva de proteção também. Todo Direito internacional dá ao Estado uma série de garantias que o protege. São questões de não-intervenção, de soberania, porque o Estado regula suas próprias leis, suas próprias questões internas. E a ONU, surgida após a Primeira Guerra Mundial, conduz em 1947 uma resolução importante que cria o Estado de Israel e prevê também a criação do Estado da Palestina. Só que há um detalhe importante: Jerusalém é a cidade sagrada para os judeus, palestinos e cristãos. E a decisão de fazer de Jerusalém um centro internacional gerou conflitos que foram ganhando mais proporção. A própria inserção de um estado judeu dentro da região gerou a revolta dos palestinos que foi totalmente reprimida no episódio conhecido como nakba palestino, em 1948. Até hoje é uma data lembrada com tristeza, porque representou a expulsão dos palestinos de suas casas. E você ainda tem essa divisão de Jerusalém, com o lado ocidental sob o comando de Israel e oriental sob comando da Jordânia, que foi o país escolhido naquele momento. Adiantando um pouco, a gente tem a guerra dos seis dias em 1967, em que Israel intercede em relação a algumas revoltas de alguns estados que estavam apoiando a causa Palestina e toma o controle de Jerusalém, algo muito questionado na comunidade internacional. É bem complexo fazer um resumo, mas historicamente essa questão tem esses pontos.
Indo para o presente, o senhor escreveu num artigo que a desordem e o caos na região podem ser interessantes para alguém. O Hamas, neste ataque terrorista, parece ter o claro objetivo de arrastar as tropas de Israel para um conflito na Faixa de Gaza. Quais seriam os objetivos do Hamas com esses ataques?
A política internacional não é feita de forma binária. Muitos países se posicionam apoiando a causa palestina. Mas esses Estados que declaradamente apoiam a causa palestina, nunca se posicionaram na pratica quando tiveram oportunidade para criar um Estado palestino. Estou falando antes de todo esse processo de 1948. Esses Estados sempre quiseram conduzir ações que tivessem benefícios ou proteção para eles. Maquiavel já explicava que as alianças políticas são feitas dessa forma. Maquiavel dizia: só vou me aliar com alguém se tiver algum benefício em troca ou se me fortalecer. No final das contas, muito se fala da opressão de Israel, mas não tem só Israel nesse jogo. O mais importante dessa análise é fugir do maniqueísmo. A gente tem que tirar essa perspectiva das análises que envolvem todas as questões de política internacional. É tentar olhar de fora, porque senão a gente vai começar a discutir tudo como Ba-Vi. Por que o Hamas atacou? A causa palestina tem sido enfraquecida ao longo dos anos, pela condução diplomática de Israel na tentativa de obter acordos com países árabes. O mais emblemático é o distensionamento das relações entre Israel e Arábia Saudita. A intenção do Hamas é causar uma reação de Israel e, com isso, uma comoção desses países árabes para que voltem a olhar para a causa palestina. O terrorismo traz essa perspectiva. Eu preciso gerar terror para chamar atenção para alguma coisa.
O grupo extremista Hamas controla há 16 anos a Faixa de Gaza, onde vivem dois milhões de pessoas. O que explica a força desse grupo terrorista?
Na verdade, há um confronto político entre o Hamas e o Fatah como os dois principais partidos políticos. E aí há uma discussão em relação a chamar o Hamas de partido político, mas ele tem uma ala política e uma ala militar. O Fatah é mais conhecido, até por causa de Yasser Arafat. Você tem o Fatah mais presente na Cisjordânia e o Hamas controlando a Faixa de Gaza. A propaganda é fundamental dentro da causa. Então, o Hamas consegue aliciar pessoas para seguirem este caminho. A força do Hamas vem também muito dos aliados na região, em especial o Irã, que já tem uma ligação muito forte com Hezbollah, no sul do Líbano, inclusive fornecendo armamentos. Se a gente pensar nesses ataques terroristas, eles precisam de muitos recursos, de serem planejados com bastante tempo. E, para o Irã, essa aproximação da Arábia Saudita com Israel é complicadíssima para os interesses dele na região. Então há de fato esse financiamento externo.
Os ataques do Hamas resultaram na morte de mais de mil israelenses e na captura de mais de 100 reféns. O que explica o fiasco dos lendários serviços de inteligência e das forças de segurança de Israel?
Essa é uma dúvida muito grande, porque o Hamas atacou pela porta da frente. Existem muitos túneis e Israel sempre tenta bloqueá-los, mas de fato foi uma surpresa muito grande. Mas a gente tem que ter cuidado para não cair numa perspectiva de conspiração, apesar de existir em Israel uma condução política de tensionamento dessas relações. A tendência de cair na conspiração é bem atrativa, mas a gente tem que ter muito cuidado porque isso ainda vai ser investigado. E talvez tenha sido de fato um relaxamento, achar que estavam seguros. E tem ainda o caráter surpresa, que é bem emblemático nessa questão, porque foi um ataque conjunto, com os terroristas do Hamas passando por cima de grades, de muros. Outra característica desse ataque foi o uso de drones, o que dificulta ainda mais uma contra-ofensiva. E aí entra a Rússia, porque se fala muito também que esses drones foram os mesmos identificados na guerra da Ucrânia. Ainda há muita coisa a ser respondida.
Como o senhor vê a possibilidade desse conflito escalar?
Primeiro, a gente tem que falar dos Estados Unidos, que tem uma aliança histórica com Israel. A relação com Israel é muito influenciada pelos judeus que vivem lá. Apesar de não serem tão numerosos, eles são economicamente muito fortes e têm um nível de escolaridade muito maior do que a média. Depois da Segunda Guerra, os EUA viraram protagonistas mundiais e entraram como grande potência na região. A extinta União Soviética também tinha interesse em fortalecer Israel por toda a relação que existe com o país. Inclusive, os kibutz israelenses foram criados pelos russos no início do século 20. Você tem uma imensa comunidade judaica em Israel de origem russa. Cerca de 1,5 milhão de israelenses falam russo. Depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos e a extinta União Soviética estiveram juntos na criação do estado de Israel e na manutenção do status quo na região. Mas isso tensionou na guerra dos seis dias em 1967, porque países que estavam naquele momento próximos a União Soviética na Guerra Fria participaram do front contra Israel. E os Estados Unidos viram como oportunidade de frear as ações da União Soviética. Então, os EUA têm essa relação histórica e se posicionaram de uma forma muito veemente de que a relação com Israel é inabalável e que vai fazer o que for preciso para que o país garanta a sua segurança na região. Os outros atores da região são o Hezbollah, no sul do Líbano. Existe a questão da Síria, que estava sendo vista como um não-participante do processo, mas recentemente Israel bombardeou a Síria e a Rússia já condenou os ataques. Para a Rússia, tem outra questão importante: um confronto lá ajuda a esquecer a Guerra da Ucrânia. E tem o Irã, que financia esses grupos, totalmente interessado nesse confronto. Vamos ver como vai se posicionar o Egito, a Arábia Saudita... Agora, não vejo esse conflito gerar contornos muito amplos, porque a gente está falando de um estado, Israel, combatendo grupos que não têm uma pátria representada, não tem uniforme, não tem um teatro de guerra específico. Então é muito difícil combater. Existe um medo muito grande em Israel porque eles não sabem quem está na rua. Pode ter membros do Hamas lá à paisana esperando fazer alguma coisa. É muito difícil uma guerra de um estado com um inimigo invisível de certa forma. A condução inicial é uma repressão que também está sendo muito questionada. Morreram civis em Israel, e a gente tem que condenar completamente, assim como temos que condenar também civis morrendo na Palestina.
Muitos líderes mundiais defendem a criação de dois Estados para a pacificar a região. O senhor considera essa solução plausível?
É o que o mundo deseja - um estado israelense e um estado palestino. Mas é muito complicado porque, como disse, o caos pode interessar a muita gente. Enquanto você tiver um lado que nega a existência de outro, não vai conseguir pacificar a região. Porque não há acordo com quem nega a existência do outro. A parte mais emblemática em relação a essa questão é essa - a própria falta de caminhos para um acordo.
Como o senhor analisa a posição do Brasil?
O Brasil se posicionou, através do presidente Lula, e condenou os ataques do Hamas, mas também o uso de uma força desproporcional que mate civis no lado palestino. A questão é que o Brasil não considera o Hamas como grupo terrorista. Quem considera o Hamas um grupo terrorista são os Estados Unidos, a União Europeia, e mais alguns aliados. O Brasil não considera porque segue o caminho da ONU. O Hamas, como falei, tem um braço político e outro militar. Mas essa questão vai ser conduzida ao Conselho de Segurança e a tendência da Rússia é vetar essa posição. Historicamente, o Brasil oscilou de um lado para outro, desde Osvaldo Aranha que presidiu a assembleia que criou o estado de Israel e da Palestina. O regime militar curiosamente se posicionou ao lado dos árabes, argumentando que o sionismo era uma forma de racismo. Mas muito também por interesses da crise do petróleo que estava acontecendo na década de 1970. Nos últimos anos, você vê uma tendência da esquerda de apoiar a causa palestina. Mas o posicionamento de Lula é considerado prudente dentro da linha histórica da diplomacia brasileira e da Organização das Nações unidas.
O senhor falou em radicalização, e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu partido deram uma guinada à extrema direita nos últimos anos. Até que ponto a radicalização do governo de Israel contribuiu para os ataques terroristas?
Na verdade, deram uma guinada para o tensionamento das relações. Tensionaram mais, tanto Gaza como na Cisjordânia, com os assentamentos judeus. É muito importante entender que essa radicalização das relações obviamente teria uma resposta. E agora o governo Netanyahu está tentando resgatar uma coalizão, porque Israel estava dividido em termos dos caminhos a seguir. Ele conseguiu dividir Israel e agora, nessa guerra, está tentando juntar os cacos dentro dessa condução para um sentimento nacional só. Como eu disse, a conspiração é sempre muito complicada, mas existem interesses diversos dentro de uma guerra. Não é só o que está na ponta do iceberg. Tem muitas outras coisas que a gente tem que buscar.
Israel ordenou o deslocamento de 1,1 milhão de habitantes de Gaza para o sul e a ONU alerta para consequências devastadoras. Israel corre o risco de ficar isolado caso a resposta aos ataques terroristas provoque um desastre humanitário na região?
Israel não corre esse risco de ficar isolado. A resposta de Israel é desproporcional e ela já vem desde muito tempo. A própria resposta após os ataques já é desproporcional porque a gente está falando de um exército muito qualificado com recursos diversos, com apoio de grandes potências. E aí pensando no próprio apoio dos Estados Unidos, esses assuntos são tratados no Conselho de Segurança da ONU. E os membros do Conselho de Segurança têm poder de veto para qualquer questão encaminhada por lá. Se houver alguma resolução que possa prejudicar Israel, o poder de veto dos Estados Unidos vai impedir que isso aconteça.
O senhor acredita que esse conflito vai perdurar por muito tempo?
Historicamente, esses conflitos são pontuais. Você tem a erupção naquele momento e depois vai esfriando. Como as forças são desproporcionais, a tendência é que dê uma esfriada. Vamos ver como se comportam os outros atores da região, mas não acredito que o conflito se prolongue. Até porque o Hamas já conseguiu o que queria - que é causar terror, gerar pânico na população israelense e chamar a atenção. O Hamas não está muito preocupado se vão morrer civis palestinos ou não.
Raio-X
Murilo Jacques é professor de Relações
Internacionais e mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano pela
Universidade Salvador –(Unifacs/ Laureate). Participa como pesquisador
do Instituto Brasileiro de Políticas Sociais e Econômicas (Ibrapse), com
grupos de estudos voltados a Relações Econômicas do Brasil e de
Políticas Internacionais. É participante do A TARDE Talks, com Ildazio
Tavares Jr.
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