“Inúmeras pessoas se salvaram naquele dia 5 de outubro, no quiosque em frente ao Hotel Windsor, na Barra da Tijuca, onde estávamos hospedados para um congresso internacional de ortopedia. Colegas passavam ali e nos cumprimentavam. Estávamos eu, o doutor Corsato (Marcos de Andrade Corsato, de 62 anos), Perseu (Perseu Ribeiro Almeida, 33) e Diego (Diego Ralf Bomfim, de 35), que operava comigo. Houve uma hora que o doutor Corsato disse: ‘Não chama muita gente não, porque daqui a pouco teremos que falar inglês e espanhol. Vamos conversar aqui reservadamente’. Facilmente, ficariam 20 ou mais pessoas conosco, porque todos queriam os ensinamentos do doutor Corsato.
Doutor Corsato se sentou na nossa mesa por acaso. Um mês antes, em outro congresso, em Vitória, ele se ressentiu de não ter visto Perseu, que ele chamava de amigo baiano, que foi seu aluno. Éramos paulistas, com exceção de Perseu. Então, quando o viu no quiosque, doutor Corsato não teve a menor dúvida de se juntar a nós.
Falamos de futebol, de medicina, de projetos de vida. Começou com o Perseu, que estava feliz por ajudar pacientes na Bahia com novas técnicas ortopédicas menos invasivas. Aquele congresso seria um diferencial na carreira dele. Disse que queria ter mais filhos, embora fosse vasectomizado. Anunciou que iria reverter a cirurgia. Nós três, ali, comentávamos como as nossas carreiras decolavam. Já o doutor Corsato, após mais de 30 anos de experiência, nos confidenciou sobre a felicidade que sentia de ver a última filha se casando e que, a partir dali, diminuiria o ritmo de trabalho para aproveitar a vida com a mulher.
Na hora de pagar a conta
Diego percebeu que estava ficando tarde. Comentou que era 0h45. A gente procurou o garçom para pagar a conta. Foi bem na hora de sair quando o acidente (três homens armados atacaram o grupo que, segundo a polícia, confundiu Perseu com Taillon Barbosa, um dos chefes da milícia da favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste, que seria preso pela Polícia Federal um mês após a execução).
Naquela madrugada, o Fluminense tinha se classificado para a final da Libertadores. Passaram um ou dois carros, por volta de meia-noite, com torcedores soltando fogos. Mas, logo depois, foram os disparos. Eu não reconheci de pronto e pensei: ‘Estão soltando fogos em cima da gente’. Minha primeira impressão foi de que tinham visto o Diego com a camisa do Santos e Perseu, com a do Bahia.
Senti as explosões, aquela dor quente. Por reflexo, eu resolvi defender o meu rosto e me virar para me proteger no chão, sair do nível dos ‘fogos’. Percebi a gravidade das lesões, mas ainda não entendia o que estava acontecendo. Senti que estava surdo do ouvido direito e com o meu braço esquerdo sem conseguir mexer. Aí entendi que meu braço e dedo estavam fraturados, mas eu conseguia mexer a ponta dos dedos, havia sensibilidade. Pensei: ‘Então esse lado aqui tem conserto’. Fui ver a mão esquerda, percebi que mexia mais fácil, porém havia uma lesão no ombro. Levei a mão até o ouvido direito e senti que ele tinha virado uma couve-flor: ‘Poxa, estourou o meu ouvido e fiquei surdo. Tranquilo, ainda tenho a mão esquerda. A mão direita também vai ficar boa’. Nessa hora, o lado médico falou mais alto.
Movimentei a coluna para os dois lados: ‘Bom, a coluna está preservada e a ponta dos pés se mexia! O que tem de lesão a gente resolve’. Sempre otimista. Aí chegou a hora de ver o que acontecia ao meu redor. Vi o doutor Corsato executado na mesa com os braços estendidos. Diego estava fora do meu campo de visão. Na mesma hora, um traficante na minha frente executava Perseu. Cheguei a ver o braço do assassino estendido. Perseu ainda se mexia no chão, até parar de vez.
Em seguida, mais tiros sendo desferidos em mim. Senti o calor da bala entrando no meu corpo. Aí entendi o que se passava: ‘Estão matando a gente. Não tem o que fazer. Só resta esperar. Vou controlar o que for controlável. Torcer para não vir algum tiro de misericórdia. O tiro que fará minha cabeça parar de funcionar de vez’. Comecei a ver o sangue sair do meu corpo. ‘Estou respirando, estou pensando, vou tentar baixar a pressão cardíaca para evitar sangramentos, porque a principal causa, se eu morrer, vai ser disso’. Poderia vir uma falta de ar muito grande, ou minhas pernas formigarem. Alguma coisa vai acabar acontecendo. Fiquei só recebendo os tiros, não dependia mais de mim. Vou controlar o que der. Acabaram os tiros. Eu fiquei o mais calmo possível. Não falava, não fazia nada. Virei um pouco o rosto, não cheguei a ver o carro, tampouco os rostos dos assassinos. Simplesmente vi que tinha uma pessoa indo embora.
‘Voltei a me autoexaminar’
Ouvi o Diego gritar por socorro. Algumas pessoas se aproximaram e eu ouvi: ‘Tem três mortos e um vivo’. Comecei a mexer a cabeça. ‘Não vou gritar para não aumentar a minha frequência cardíaca, porque senão eu vou morrer por falta de sangue’. Nesse meio-tempo, eu voltei a me autoexaminar. Comecei a forçar o vômito para saber se estava com algum sangramento intestinal. Não percebi nada. Bastava aguardar o socorro, que demorou muito. Mas é a opinião de quem está lá no chão, ansioso. Fiquei feliz por socorreram o Diego primeiro.
No Hospital Municipal Lourenço Jorge (Barra da Tijuca), soube que o Diego morreu. Deu uma desanimada muito grande. Perdi meu terceiro amigo.
Saí do hospital com 11 projéteis. Agora são dez. Ao todo eram uns 20 furos no corpo. Todos fecharam. Não sei ao certo quantos tiros levei. De 14 a 20. Aposto em 17. Ainda não passei pelo detector de metais. Faço fisioterapia diariamente, média de duas horas e meia. Vou ao meu limite. Também tenho psicólogo. Sem a muleta, já consigo dar uma volta no quarteirão. Estou com uma bolsinha de colostomia.
Bateu forte a realidade. Foi uma execução, mas por que nós? Claro, a gente não é inocente de imaginar que não há guerras do tráfico e da milícia, mas ali (na orla da Barra)? Na nossa cabeça, estávamos seguros.
‘Vários milagres’
Fui muito bem tratado no Rio. Várias pessoas me pediram desculpas pelo que aconteceu. Nesse momento, percebi uma certa aceitação, uma banalização da violência. Como é viver o tempo todo com medo num estado onde não se sabe se vai chegar com vida ao trabalho ou em casa?
Minha meta é me recuperar, voltar à rotina como médico até abril do ano que vem. Considerando meu estado hoje, acho que ocorreram vários milagres. O que aconteceu comigo e meus amigos me deu a ideia de brevidade da vida. Agora quero viajar com a minha família, algo que há mais de seis anos não fazíamos. No Rio, só ponho os pés em caso de extrema necessidade”.
Extra o Globo
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