Empresas do Maranhão com contratos milionários com o poder público passaram a explorar um mercado de interesse de lideranças políticas do Congresso e obtiveram sucesso imediato. Nos últimos quatro anos, empresários locais começaram a negociar cavalos de raça e transformaram o Estado com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil em um dos maiores polos de investimentos do País.
O crescimento é puxado por haras de políticos e de empresários investigados que se destacam no mercado pela quantidade e pelo valor milionário dos animais que negociam. Por trás das criações recentes estão figuras com trânsito e negócios com autoridades como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, e o deputado federal Marreca Filho (Patriota-MA), além de políticos regionais.
O peso do Maranhão na criação de cavalos passou a ser destacado por consultores de compra e venda de animais em leilões, em sinal de prestígio. “Nos três últimos anos, não tem um Estado no Brasil que comprou cavalo, realmente, como o Maranhão”, afirmou em um leilão realizado em setembro o consultor Júnior Machado, um dos mais conhecidos do setor. Em outro encontro, no mesmo mês, Machado reforçou a relevância dos maranhenses. “De três, quatro anos para cá, essa pujança de compras aumentou muito.”
Durante um mês, a reportagem reuniu dados de execução orçamentária do governo federal e do Maranhão, levantou históricos empresariais, mapeou cavalos negociados em leilões e analisou extratos bancários e ações judiciais. No Estado, o Haras São Pedro é um dos protagonistas da cena do cavalo Quarto de Milha, os preferidos de políticos e atletas que disputam competições de vaquejada. Fundado em 2019 e registrado na Receita Federal em agosto de 2021, o criadouro é comandado pelos filhos do empresário Ricardo Del Castilho, de Imperatriz.
Dono das empreiteiras Terramata e RDC Construtora e Empreendimentos, o empresário é conhecido no setor como a pessoa que “fez a estrutura” do haras. Entre 2015 e 2023, o governo do Maranhão pagou mais de R$ 847 milhões às empresas de Del Castilho – que também mantêm contratos com prefeituras no Estado.
Um desses acordos levou o empreiteiro ao banco dos réus. Ricardo Del Castilho foi acusado pelo Ministério Público maranhense, em 2019, por fraude à licitação, lavagem de dinheiro e promoção de organização criminosa. A denúncia aponta que a Terramata contratou empresas do então prefeito de Açailândia (MA), Juscelino Oliveira, para asfaltar ruas da cidade, e Del Castilho “enriqueceu ilicitamente” ao superfaturar a obra.
Além de atuar com pavimentação e construção de escolas no Maranhão, as duas empresas estão diretamente ligadas com a criação de cavalos. Segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito do Maranhão (Detran-MA), a RDC é a proprietária do caminhão que transporta os animais do Haras São Pedro pelo Brasil. Em outubro, a Terramata levou um caminhão-pipa e um trator a uma vaquejada promovida pela família.
Políticos compram cavalos de haras ligado a empreiteiras
As empreiteiras da família Del Castilho fecham contratos com o poder público, com regularidade, há uma década. Até 2019, as empresas tinham uma atuação regional. A partir daquele ano, a Engefort, controlada por Antônio Carlos Del Castilho – irmão de Ricardo – ganhou projeção nacional após vencer licitações em série no governo Jair Bolsonaro (PL).
A reportagem obteve extratos bancários que indicam uma atuação financeira conjunta entre a Engefort e a Terramata. Os documentos registram que, entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, as empresas fizeram 155 operações de crédito e débito, incluindo transferências para Antônio Carlos Del Castilho. O valor total chegou a R$ 24,2 milhões.
Em âmbito nacional, a Engefort ganhou licitações para asfaltar ruas no Maranhão, Amapá, Rio Grande do Norte, Ceará, na Bahia e em Sergipe, por exemplo. Desde 2019, o governo federal reservou mais de R$ 622 milhões do orçamento público para pagar a empreiteira. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) manteve os pagamentos para a Engefort, que é alvo de uma ação de ressarcimento ao erário pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).
Em junho do ano passado, a estatal foi à Justiça Federal do Maranhão reclamar um prejuízo de R$ 3,3 milhões em três contratos fechados com a empresa, em 2019, para asfaltar ruas em Vitorino Freire e em Lago da Pedra, no Estado. Uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) afirmou que a Engefort executou a obra “de forma negligente e sem observância aos parâmetros normativos técnicos”.
A Codevasf anexou o relatório da CGU ao processo e solicitou o ressarcimento do valor “por se tratar de dinheiro público malversado mediante a prática de ato ilícito com violação aos princípios constitucionais, administrativos e cíveis”. “Restou configurado o ato ilícito no que tange a medição de valores indevidos, jogo de planilha e a qualidade dos serviços oferecidos, demonstrando também que houve a violação da boa-fé que rege os contratos”, alegou a estatal.
No processo, a Engefort afirmou que as obras “foram devidamente executadas de acordo com os parâmetros previstos no processo de licitação”. Segundo a empreiteira, “a Codevasf desempenhou um papel fundamental ao monitorar e autorizar a execução dos serviços”, ou seja, “qualquer falha na fiscalização ou na comunicação de não conformidades, se houve, não pode ser atribuída” à empresa, “visto que a responsabilidade pela adequação dos serviços prestados recai sobre a fiscalização” da estatal.
As obras de R$ 8 milhões da Engefort em Vitorino Freire foram bancadas com recursos indicados por Juscelino Filho, em 2019, quando era deputado federal. O ministro tem uma relação próxima com os donos do Haras São Pedro. Em 2022, os donos do criadouro compraram um cavalo do haras que Juscelino mantém em Vitorino Freire por R$ 200 mil.
O ministro omitiu um patrimônio de ao menos R$ 2,2 milhões em cavalos Quarto de Milha do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O haras onde Juscelino mantém os animais estava em nome da irmã dele, a prefeita de Vitorino Freire, Luanna Rezende (União-MA). A empresa foi baixada da Receita após a reportagem.
Em setembro do ano passado, o ministro deu lances no leilão da família Del Castilho, para quem também mandou “um grande abraço”. Na ocasião, o Haras São Pedro faturou R$ 4,9 milhões com a venda de animais de raça. “Um haras que tão jovem conseguiu conquistar o Nordeste inteiro”, resumiu o assessor Ayrton Lins no início do leilão.
Dentre os compradores do leilão do Haras São Pedro estava o deputado Marreca Filho. O parlamentar não declarou ter cavalos no patrimônio apresentado ao TSE em 2022, mas compra animais de raça em leilões com frequência.
Dono de haras é candidato à prefeitura no Ceará
Outro criadouro considerado um fenômeno de crescimento e de resultados após pouco tempo de funcionamento, o Haras São Luís iniciou suas atividades sob o comando do ex-piloto de carro de rally Ruan Lima. O criadouro foi registrado na Junta Comercial do Maranhão em agosto do ano passado, embora já estivesse em funcionamento. O empresário alterou as atividades de uma empresa pré-existente, especializada em “casa de chá” e “estacionamento”, transformando-a em “criação de equinos”.
“Um cara que entrou (no setor e) não sabia nem o que era um cavalo”, resumiu o consultor Júnior Machado durante um leilão, em setembro.
O e-mail de contato do Haras São Luís, na Receita Federal, é o setor de contabilidade da Med-Surgery Hospitalar, empresa de fornecimento de material médico e nutrição controlada pelo pai de Ruan Lima. O telefone cadastrado pelo haras é o mesmo da Med-Surgery. Entre 2015 e 2024, o Governo do Maranhão pagou R$ 70,1 milhões à empresa de saúde. O governo federal transferiu outros R$ 8 milhões no mesmo período.
O empresário Alexsandre Lima, pai de Ruan, é réu em um processo movido pelo Ministério Público do Maranhão. A denúncia aponta que a Med-Surgery supostamente se beneficiou de uma licitação fraudada na Prefeitura de Paço do Lumiar (MA). A ação por improbidade contra o empresário e outros investigados, pelos mesmos motivos, foi julgada improcedente pela Justiça.
Ruan Lima prepara sua candidatura pelo PSD à prefeitura de Moraújo, cidade com 8 mil habitantes no norte do Ceará. Em pré-campanha, anunciou que o deputado federal Domingos Neto (PSD-CE) encaminhou, em dezembro, R$ 963 mil em recursos “para a saúde do município”.
“Obrigado, deputado, por atender um pedido nosso em prol de melhorias ao nosso povo”, escreveu Lima. “Tá na conta.
Dono do Haras São Luís, Ruan Lima é próximo de Juscelino Filho e de Arthur Lira. Em 2022, ele e o ministro organizaram o 1º Leilão de Quarto de Milha do Maranhão. Na ocasião, o empresário gastou R$ 200 mil para comprar 33% de um dos animais do ministro.
Lira comprou um cavalo do haras de Ruan Lima, por R$ 126 mil, em um leilão em setembro do ano passado. “Comprando aqui comigo, manda um abraço para o Ruan Lima, para toda a família, mais especial para o nosso comandante Alex, o comprador foi (o) deputado Arthur Lira, nosso presidente da Câmara, e seu filho Álvaro Lira”, anunciou o consultor Rodrigo Loureiro na ocasião.
Nas redes sociais, Ruan Lima exibe a amizade com Lira em fotos. Em agosto do ano passado, o empresário agradeceu ao deputado “pelos conselhos” e o citou como “um exemplo”. Em novembro, um novo registro. Desta vez, publicou uma imagem de um passeio com Lira, com o senador Weverton Rocha (PDT-MA) e com o prefeito de Coreaú (CE), Edezio Sitonio (PDT). “Amigos do peito”, disse.
O presidente da Câmara é criador de bois e de cavalos em um haras no município de Pilar, interior de Alagoas, embora não tenha informado possuir cavalos ou bois na relação de bens enviada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 2022. Arthur Lira comprou um cavalo do cantor Wesley Safadão por R$ 200 mil e esteve com empresas de apostas na compra de material genético de um outro animal. Os criadores conseguem altos lucros com a reprodução de cavalos raros.
A indústria do cavalo como um todo movimenta cerca de R$ 30 bilhões por ano no Brasil, segundo estimativas de associações do setor. Boa parte do valor é apurado pelo mercado que envolve os animais da raça Quarto de Milha. A compra e venda desses cavalos ocorre em leilões privados ou em transações particulares, sem obrigatoriedade de registros públicos dos termos das negociações.
A criação de Quarto de Milha e as competições de vaquejada atraíram o interesse de casas de apostas no ano passado, quando o ramo das “bets” entrou na mira de uma CPI na Câmara. Empresários da Pixbet e da MarjoSports, famosos sites de apostas do País, fizeram a maior oferta pública dos últimos tempos por um único cavalo: R$ 15 milhões. Eles pretendiam comprar o Dom Roxão, considerado um dos mais lendários garanhões da raça, mas o proprietário recusou a oferta. O cavalo morreu em janeiro após um acidente.
Procurados, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, o presidente da Câmara, Arthur Lira, o deputado Marreca Filho, o empresário Ruan Lima e a Med-Surgery não retornaram o contato.
O empresário Ricardo Del Castilho afirmou à reportagem que a ideia de investir em cavalos partiu dos filhos, que são os idealizadores do parque. Segundo ele, a criação “já deve ter 8 anos, eu acho, 7 anos”. Até o momento, o haras promoveu um leilão de seus animais. “Eles são os que gostam mesmo dos animais, de cavalos. Na realidade, são eles mesmo que mexem, sempre mexeram desde criancinhas”, declarou.
Segundo Del Castilho, o haras é uma empresa “totalmente separada” da Terramata. O empresário afirma que o caminhão está em nome da RDC porque foi comprado em consórcio. Ricardo Del Castilho avaliou que o Maranhão se tornou um polo de investimento em cavalos Quarto de Milha por causa das vaquejadas. “Está muito aqui na região do Maranhão”, afirmou.
O empreiteiro disse que o processo contra ele acabou “um tempo desse”. Pontuou ainda que não trabalha em parceria com a Engefort, do irmão Antônio Carlos Del Castilho. Um dos filhos de Ricardo foi sócio da empresa entre 2014 e 2018.
“Totalmente independente. Engefort é uma empresa de um ex-sócio meu, nós separamos já há 8 anos atrás. Não tem nada, nada, vínculo algum”, relatou. “Se você me perguntar alguma coisa de lá, eu não sei responder. Nem obra com a Codesvaf, com o governo federal, eu tenho. Mais uma vez, repetindo, a Engefort, eu não tenho nada, nada, nada, um vínculo.”
A empresa Engefort Construtora informou que os processos licitatórios de que “participou e foi vencedora, o fez de forma regular”. “Somos uma empresa imbuída de elevadas responsabilidades, ancoradas em um processo minuciosamente estruturado e certificada nas normas ISO 45001, ISO 14001, ISO 9001 e SIAC, trabalhando sempre com honestidade em suas operações e comprometida com o cumprimento das leis”, assinalou.
Julia Affonso/Vinícius Valfré/Estadão
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