Os Ministérios Públicos do Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso e Pernambuco começaram a exigir documentos pessoais de quem acessar informações de, por exemplo, contracheques de promotores ou servidores. Desse modo, funcionários ligados às instituições estaduais poderão saber quem viu a relação de nomes, salários e benefícios de seus servidores. Para especialistas em transparência pública, o fato é preocupante e pode causar monitoramento de cidadãos comuns que acessam dados públicos.
Os MPs argumentam que a medida não é um empecilho e que cumprem a legislação e as resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O conselho, por sua vez, acrescentou que a identificação tem como objetivo garantir a segurança dos dados de promotores e procuradores (veja abaixo).
No Ministério Público do Mato Grosso (MP-MT) e no Ministério Público de Pernambuco (MP-PE), qualquer cidadão terá de fornecer CPF, telefone, e-mail e nome completo apenas para saber os salários dos servidores públicos. No Rio de Janeiro, o MP exige nome completo, data de nascimento e e-mail. No Ministério Público do Acre (MP-AC) o fornecimento do número do CPF é obrigatório para o interessado em analisar os dados do órgão.
Juliana Sakai, diretora executiva da Transparência Brasil, organização independente que tenta promover a transparência e o controle social do poder público, disse que a situação é um contínuo movimento contra a transparência. “A gente não consegue nominalizar o contracheque, a gente não consegue saber quem é que está se beneficiando de todas essas regalias que estão sendo dadas no Ministério Público”, disse.
Para a especialista, a exigência de dados de pessoas comuns para acesso a dados públicos é uma medida irregular. “Quando você coloca um formulário, você obviamente está coletando dados, você está dando o recado para o público de que quem está sendo monitorado é o cidadão, e não são eles que devem ser monitorados”, afirma. Juliana considera que ao adotar essa medida, há uma inversão da lógica de transparência e mostra que os Ministérios Públicos não estão dispostos a prestar contas à população.
“Querem colocar empecilhos. Isso traz uma ameaça aos jornalistas, aos cidadãos, deixa um recado nesse sentido. Além disso, inviabiliza ou dificulta muito uma coleta automatizada, e isso fere a legislação”, afirmou.
Com formulário, servidora ligou para cidadão e o chamou de ‘bisbilhoteiro’
Em 2013, uma servidora pública de Brasília foi processada nas esferas cível e criminal por ter questionado um cidadão comum sobre o motivo de olhar seus dados. À época, a funcionária do Senado Federal chamou o popular de “bisbilhoteiro”. O Senado, naquele momento, exigia um formulário com dados da pessoa que acessava os registros públicos. Assim, a servidora teve acesso e identificou quem havia conferido suas informações no site da transparência do Poder Legislativo. Depois de travarem batalhas por e-mail e no tribunal, a servidora fez acordo, pagou 10% de seu salário e os processos foram arquivados.
Um dos receios de especialistas é justamente que casos como o da servidora do Senado se repitam. O monitoramento de dados para saber quem acessa, por exemplo, os salários de servidores públicos também é uma preocupação do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, composto por 30 entidades. No fim do ano passado, a organização enviou um memorial ao CNMP para alertar para o possível problema. O caso do cidadão ofendido pela servidora do Senado foi citado no documento. Eles levantaram, ainda, a questão de fraudes, que ocorrem com frequência no meio digital.
“Sublinhamos que a referida exigência aventada pelo CNMP não resultará em proteção adicional aos seus membros, tendo em vista que a mera identificação autodeclaratória é passível de fraude, aliada a dispositivos de ocultação de Internet Protocol (IP). Por outro lado, resultará acidentalmente em um sinal contrário do Ministério Público à transparência das informações públicas, justamente no direito constitucional em que o órgão tem atuado como imprescindível guardião”, diz trecho do documento obtido pela reportagem.
Exigência de dados é para ‘garantir segurança de promotores’, diz CNMP
A modificação na permissão de acesso aos dados públicos ocorreu em dezembro do ano passado, quando o CNMP modificou a resolução que tratava do tema para incluir um parágrafo com as novas exigências.
“As informações individuais e nominais da remuneração de membro ou servidor mencionadas no inciso VII serão automaticamente disponibilizadas mediante prévia identificação do interessado, a fim de se garantir a segurança e a vedação ao anonimato, nos termos do art. 5º, caput e inciso IV, da Constituição Federal, salvaguardado o sigilo dos dados pessoais do solicitante, que ficarão sob a custódia e responsabilidade da unidade competente, vedado o seu compartilhamento ou divulgação, sob as penas da lei”, diz o trecho da resolução do Conselho.
A situação, no entanto, ainda será debatida no próprio grupo. Isso porque o conselheiro Rodrigo Badaró apresentou na sessão ordinária do dia 16 de abril uma proposta para excluir a exigência de identificação prévia dos interessados em acessar dados públicos. A mudança foi proposta diante das indagações feitas pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas. Não há, no entanto, data prevista para que a proposta seja avaliada.
De acordo com o setor de comunicação do CNMP, “em sua justificativa, o conselheiro Rodrigo Badaró considera que a exigência de prévia identificação do interessado para acessar informações sobre remuneração de membro ou servidor do Ministério Público ‘cria inequívoco obstáculo ao cumprimento dos princípios que norteiam o rápido, eficaz e impessoal exercício do direito fundamental à informação’”.
Ainda segundo a comunicação do CNMP, “Badaró levou em consideração a simetria entre as carreiras da Magistratura e do Ministério Público e a paridade entre o CNMP e o Conselho Nacional de Justiça para que a questão seja tratada de forma equivalente. O CNJ, por meio da Resolução nº 389/2021, deixou de exigir a identificação prévia do interessado, como condição para disponibilização de informações que tratem de remuneração de membros e servidores do Poder Judiciário”.
Sobre a modalidade atual, o CNMP afirmou à reportagem que a “previsão de identificação tem como objetivo garantir a segurança dos dados de promotores e procuradores. A medida não cria empecilhos para o acesso às informações, uma vez que elas continuam disponíveis a qualquer cidadão, como determina a Lei de Acesso à Informação”.
Ministérios Públicos não relacionam nomes e salários
No Rio Grando do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul, os Ministérios Públicos não publicam planilha com nome de promotores e servidores atrelados aos salários, o que é exigido por resolução de 2019 do CNMP. No MP de Roraima, o sistema para conferir vencimentos de servidores está fora do ar.
O MP de Santa Catarina informou que “permite a busca por cargo e por nome com o respectivo salário de membros e de servidores”. A reportagem fez duas buscas e não encontrou o salário dos funcionários públicos. Ao digitar o nome de um promotor, por exemplo, apareceram “gestão de pessoas”, “diárias e passagens” e “outros benefícios”. Ao acessar o contracheque, aparecem cargos, lotações e salários, mas sem nome dos promotores e servidores. A situação é igual no MP do MS e do RS. A comunicação do MP-MS disse que cumpre a legislação, mas não respondeu o que levou a instituição a retirar nome dos servidores da lista de dados públicos. Já o MP-RS disse que “as informações orçamentárias e financeiras da instituição seguem disponíveis”. A reportagem questionou a não divulgação de salários e nome de servidores, mas não obteve resposta.
O que diz o CNMP:
Em relação à Resolução que institui a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais no Ministério Público, o CNMP informa que a previsão de identificação tem como objetivo garantir a segurança dos dados de promotores e procuradores. A medida não cria empecilhos para o acesso às informações, uma vez que elas continuam disponíveis a qualquer cidadão, como determina a Lei de Acesso à Informação.
O que diz o MP-MT:
A solicitação de prévia identificação para consulta individualizada de remuneração no Portal da Transparência do MP-MT obedece à Resolução nº 281/2023 do CNMP, que estabeleceu a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais no Ministério Público brasileiro, e às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O que diz o MP-RJ:
A exigência referida não se constitui em um empecilho, mas, ao revés, decorre de cumprimento do disposto no art. 7° da Resolução CNMP n° 89, de 28 de agosto de 2012, que, por sua vez, teve a sua redação alterada pela Resolução CNMP n° 281, de 12 de dezembro de 2023.
O que diz o MP-PE:
A solicitação de prévia identificação para consulta individualizada de remuneração no Portal da Transparência do MP-PE obedece à Resolução nº 281/2023 do CNMP, que estabeleceu a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais no Ministério Público brasileiro, e às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Lei de Acesso à Informação (LAI).O tratamento dos dados informados pelos cidadãos é feito em conformidade com o estabelecido na LGPD e na Resolução nº 281/2023 do CNMP.
O que diz o MP-SC:
O portal da transparência do MP-SC permite a busca por cargo e por nome com o respectivo salário de membros e de servidores, cumprindo a Lei de Acesso à Informação e a Resolução n. 86/2012, do CNMP, com suas alterações, estando sempre enquadrado no patamar de excelência pelo órgão de controle. O portal, inclusive, vai além e não exige qualquer cadastramento de usuários para o acesso à informação pleiteada.
O que diz o MP-AC:
Informamos que a identificação do CPF para consulta de contracheques e de informações salariais de membros e servidores do Ministério Público do Estado do Acre é uma determinação prevista na Resolução nº 89, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O MP-AC cumpre integralmente todas as determinações legais e regimentais do Sistema Tribunais de Contas e do CNMP.
O que diz o MP-MS:
Em resposta à sua solicitação o MP-MS informa que, cumpre estritamente toda legislação federal que rege a matéria sobre a transparência e a Lei Geral de Proteção de Dados, ambos com fundamento constitucional, bem como a regulamentação do Conselho Nacional do Ministério Público e observado o disposto no Conselho Nacional de Justiça.
Heitor Mazzoco/Estadão
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