A decisão da Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) da última segunda-feira (2) que impõe multa de R$ 50 mil a quem utilizar VPN (rede virtual privada) para usar o X (antigo Twitter) gera ambiguidade e deixa um vácuo interpretativo, dizem especialistas ouvidos pela Folha.
Na ocasião, os ministros respaldaram uma ordem de Alexandre de Moraes que, além de determinar a suspensão da rede social de Elon Musk, fixou multa aos que utilizassem “subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações” pela plataforma. O problema é que houve alterações no voto para o novo julgamento.
Moraes passou a se referir a “condutas para fraudar a decisão judicial”, com a utilização de meios escusos para “a continuidade de utilização e comunicações pelo X”. Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino se limitaram a acompanhar o voto de Moraes. O único a delimitar foi Luiz Fux.
O ministro votou no sentido de restringir a ordem para que ela não atinja pessoas “indiscriminadas e que não tenham participado do processo”, salvo se utilizarem a plataforma para vocalizar “racismo, fascismo, nazismo, [expressões] obstrutoras de investigações criminais ou de incitação aos crimes em geral”.
Questionada sobre o significado da decisão da Primeira Turma, a assessoria de imprensa do STF disse que “o uso e comunicações do X, com o uso de VPN ou não, são passíveis da multa por fraude à decisão”. Para mais detalhes, “é preciso aguardar os desdobramentos para saber como vai ser a aplicação”.
O professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Carlos Affonso de Souza afirma não ver mudança de sentido relevante entre a primeira determinação de Moraes e a decisão que a referendou. Para ele, existe previsão de multa só pelo acesso ao X, embora exista dúvida quanto ao que significa “condutas para fraudar a decisão”.
“Se o objetivo era impor multa a pessoas que utilizam a plataforma para atacar o Judiciário e cometer atos antidemocráticos, ele poderia ter feito um recorte: dizer que a multa seria aplicada a quem usar VPN para acessar a plataforma e fazer essas postagens”, diz o especialista. “Assim teria uma materialidade do ato ilícito mais clara.”
Advogado e professor especializado em privacidade e direito digital, Henrique Rocha interpreta a decisão de outra maneira. Para ele, há uma ampliação do escopo da ordem judicial após a decisão da Primeira Turma. Isso devido ao termo “fraudar” somado às expressões “utilização e comunicações”.
“Quando ele faz uso do verbo fraudar, há uma leitura até mais arrojada e contextualizada ao ambiente no qual estamos vivendo, que a expectativa da Primeira Turma, especialmente do relator, é de ampliar os meios pelos quais eles poderão, hipoteticamente, identificar uma burla à ordem.”
Segundo Rocha, até mesmo a Folha, ao utilizar correspondentes internacionais para publicar no X durante o bloqueio, poderia ser responsabilizada. “É triste dizer isso, mas quando ele fala em utilização, comunicação, fraudar e continuar divulgando, entendo que em alguma medida pode ser objeto de questionamento”.
Na última terça-feira (3), o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) entrou com uma ação no Supremo contra a parte da decisão que prevê a multa. O processo foi distribuído ao ministro Kassio Nunes Marques, que já é relator de um caso sobre o mesmo assunto.
A entidade diz que a decisão judicial, ao impor sanção genérica e abstrata, criou um ilícito sem previsão legal. De acordo com ela, a determinação de forma ampla e generalizada, atingindo quem não faz parte do processo, impediria o direito de defesa, em violação ao devido processo legal e aos princípios do contraditório.
A comunidade brasileira no antigo Twitter somava cerca de 21 milhões de usuários em abril deste ano, segundo dados da plataforma Statista. Era o país com o sexto maior número, conforme o levantamento, atrás apenas de Estados Unidos, Japão, Índia, Indonésia e Reino Unido.
Todas as fontes consultadas pela reportagem mencionaram a inviabilidade técnica da fiscalização do uso do X no Brasil por meio de VPN. Esse ponto é enfatizado por João Victor Archegas, professor de direito e pesquisador do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade).
“Muitas vezes a VPN é baseada em tecnologia de criptografia de ponta a ponta. Ainda que seja possível identificar uma pessoa que está usando VPN, não dá para saber por qual motivo, quais sites ela está acessando. Não é como se essa informação estivesse à disposição da Justiça ou dos órgãos de investigação”, afirma.
A única maneira que Archegas vê para fiscalização e comprovação é o caso de a própria pessoa desafiar a ordem de Moraes na rede social. “Assim fica evidente que ela tem a intenção de fraude e ela está usando VPN. Fora dessa situação muito específica, não consigo deslumbrar outra possibilidade técnica.”
Arthur Guimarães, Folhapress
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