São Paulo — A abordagem dos policiais militares que acabou com a morte de um estudante de medicina em São Paulo, na última quarta-feira (20/11), foi classificada como “erro significativo”, “incorreta” e “equívoco grave” por especialistas em segurança pública, incluindo militares da reserva de alta patente, ouvidos pelo Metrópoles.
Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, morreu após levar um tiro à queima-roupa de um policial militar dentro de um hotel, na Vila Mariana, zona sul da capital. O jovem foi perseguido por dois agentes depois de dar um tapa no retrovisor de uma viatura. Ele resistiu à abordagem e segurou a perna de um dos PMs, quando foi atingido por um tiro no abdômen.
Para José Vicente da Silva, coronel da reserva da PM e ex-secretário nacional de Segurança Pública, o fato do estudante não portar alguma arma ou objeto que pudesse ameaçar os policiais, nem mesmo ter um porte físico maior que o dos agentes, descarta a justificativa do uso de uma arma de fogo para contê-lo.
“Nesses casos, os policiais têm treinamento para imobilizar e conduzir pessoas problemáticas. Isso porque boa parte das atividades de perigo para os policiais não acontece em confrontos com criminosos, mas com pessoas perturbadas, por bebida alcoólica ou transtorno emocional, que não querem ser presos e resistem, dão um jeito de escapar. Faz parte do dia a dia do policial. É necessário que ele tenha preparo para lidar com essas situações”, avalia o coronel PM da reserva José Vicente.
Ex-corregedor da PM de São Paulo, o coronel Marcelino Fernandes também indica “graves equívocos” na abordagem dos policiais.
“Deveria ter o uso progressivo da força. Havia superioridade numérica, dois policiais. O ensinado é que um fica na segurança e o outro faz a abordagem. O que faz a abordagem deve estar com as mãos livres, enquanto o outro faz a segurança, armado. Isso é procedimento padrão”, diz Fernandes.
O uso de armas não letais — como gás lacrimogêneo, cassetete e taser (arma de choque) — são alternativas mais adequadas para esse tipo de ocorrência, de acordo com os militares da reserva. O mesmo procedimento é defendido por Rafael Alcadipani, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“[Os policiais] deveriam ter à sua disposição uma arma de choque (taser), por exemplo. Ou instrumentos menos letais que poderiam ser utilizados naquela situação, para tentar pegar aquele jovem que estava claramente desarmado e sem camisa, que mostrava que ele estava desarmado. Tem um erro de procedimento significativo”, afirma o especialista.
Influência do comando na tropa
O coronel José Vicente argumenta que a política anunciada pelos responsáveis pela segurança pública paulista — o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário Guilherme Derrite — influencia a conduta dos PMs.
“Essa engrenagem sai da instância política até chegar nos soldados que estão apertando o gatilho. Quando o alto nível da esfera política vinculada à segurança faz o anúncio do machismo, da coragem, do confronto, nós retiramos a ênfase do policiamento preventivo para o policiamento repressivo”, analisa o coronel.
O professor Rafael Alcadipani também aponta a influência na tropa de ações ou discursos das autoridades — comando da PM, secretário da pasta e governador do estado.
“Os policiais são sensíveis a mensagens que vêm da Secretaria da Segurança Pública, do governo. A gente vê um cenário em que a mensagem é que ‘tá liberado’ agir de forma mais violenta. Isso, é claro, facilita com que o sujeito não vá seguir o seu protocolo”, analisa.
Mortes por PMs
O número de mortes em decorrência de intervenção policial em São Paulo, registrado até outubro deste ano, já supera o dado estatístico de todo 2023, segundo levantamento do Ministério Público (MPSP).
De acordo com o estudo, 598 pessoas já morreram a partir da atividade policial, em 2024. O número já é maior que os 542 registrados no ano anterior e os 477 anotados em 2022.
“Não tivemos um incremento tão dramático de violência assim que justificasse esse incremento de letalidade policial”, argumenta o coronel José Vicente.
Já o coronel Marcelino Fernandes entende que o crescimento da letalidade acompanha o aumento de dados de ocorrências, prisões em flagrante e apreensões, entre outros atendimentos feitos pela PM.
“Quando se põe mais policiais na rua, que é o que o governador [Tarcísio] está fazendo, se coloca mais viaturas, se faz mais operações, é natural o confronto [e o número de mortes] aumentar. Nunca vi na história da Polícia Militar se fazer tantas operações junto ao Ministério Público, à Polícia Civil, como se está fazendo agora.”
O governador Tarcísio de Freitas lamentou a morte do estudante em postagem nas redes sociais. O chefe do Executivo paulista garantiu que “abusos não serão tolerados” e prometeu punições severas para os policiais militares envolvidos.
Condições do PMs
O professor Rafael Alcadipani frisa que o stress enfrentado pelos PMs na rotina nas ruas e outros aspectos das condições de trabalho podem influenciar nesse tipo de conduta. “Eles trabalham [em escala] 12 por 36 [horas]. A grande maioria faz Operação Delegada [ação conjunta com a Prefeitura paulistana de fiscalização do comércio ambulante], ou Dejem [jornada extraordinária de trabalho da PM], ou faz algum bico. Na verdade, significa que a hora de folga deles acaba sendo hora de trabalho”, diz.
Para o coronel José Vicente, a escala de trabalho dos policiais é extenuante. “Porque ele trabalha 12 horas por dia. Em oito horas, você está esgotando a sua capacidade de ter um trabalho que tem um alto grau de exigência de atenção. Esses fatores podem influenciar em momentos de decisão”, completa.
“O policial é um ser humano, comete erros. Um policial, um médico, quando comete erro, a tragédia é a morte, do paciente ou de alguém. O policial não sai de casa pensando assim: ‘hoje eu vou matar alguém’. É um aviso para a sociedade, a sociedade tem que respeitar as autoridades”, pondera o coronel Marcelino Fernandes, ex-corregedor da corporação.
Vídeo desmente versão de PMs
O registro feito por uma câmera de segurança contradiz a versão apresentada pelos PMs no boletim de ocorrência. No documento, eles alegaram que Marco Aurélio estaria “bastante alterado e agressivo” e teria resistido à abordagem policial.
Além disso, o documento aponta que, “em determinado momento, [Marco Aurélio] tentou subtrair a arma de fogo que o soldado [Bruno Carvalho do] Prado portava, quando então o soldado [Guilherme] Augusto efetuou um único disparo, a fim de impedi-lo”.
As imagens do circuito interno do hotel mostram que, na verdade, o PM Augusto atirou após o soldado Prado dar um chute no estudante, ter a perna presa por ele e cair para trás, desequilibrado. No vídeo (assista acima), não é possível ver Marco Aurélio tentando pegar a arma do agente — ao contrário do que foi narrado na delegacia.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), antes do momento registrado no hotel, o estudante “golpeou a viatura policial e tentou fugir”. A pasta também informou que os PMs prestaram depoimento, foram indiciados em inquérito e permanecerão afastados das atividades operacionais até a conclusão das apurações — as polícias Militar e Civil apuram o caso.
Fonte:Metrópoles
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